Inês Borges Coutinho, Violet

«Sinto que a luta do povo palestiniano vai ser apoiada na Festa»

Inês Borges Coutinho, conhecida no meio da música electrónica por Violet, colabora há alguns anos com a Festa na programação da «Rave Avante!», para a qual convida artistas comprometidos com as lutas dos povos. Este ano, a Palestina estará em destaque.

Um verdadeiro serviço público de cultura podia muito bem inspirar-se na Festa do Avante!

A Violet volta este ano a ajudar a Festa! a programar uma noite para DJ a que convencionámos chamar «Rave Avante!». Que outros músicos convidou este ano e porque razão os chamou?

Este ano convidei a Saya, uma artista residente no Porto, anteriormente na Galiza, e de origem palestiniana. É uma convicta defensora da libertação do seu povo e uma DJ muito interessante, que mistura batidas sincopadas de todo o mundo. Também o Oseias se juntará à «Rave Avante!» este ano: sigo o trabalho dele como produtor há uns anos – mais recentemente ouvi-o a tocar DJ sets muito bons que me fizeram imaginar um auditório 1.º de Maio cheio daquela música bonita e desafiante.

A Saya é uma DJ com origens palestinianas e sabemos que em toda a Europa a situação em Israel tem motivado espectáculos em clubes de apoio à Palestina. Este também vai ser um dos temas centrais do espectáculo da Festa?

Sinto que a luta do povo palestiniano vai ser apoiada transversalmente nesta Festa, e a «Rave Avante!» não é excepção. Mesmo em edições passadas houve o cuidado de pensar em DJ que eram frontalmente pró-Palestina, como a Renata, Yazzus, Ecstasya ou Ciel. Nesta edição da Festa, mais do que nunca impõe-se esta consciência. Acho que posso falar por todos os artistas da Rave quando digo que esperamos ver muitas bandeiras da Palestina no público.

Também temos recebido notícia de que as autoridades de alguns países europeus têm reprimido ou proibido algumas dessas iniciativas de crítica ao governo de Israel. Como é que a Violet tem acompanhado esse movimento e que notícias tem recebido dele?

Sim, é verdade. Pelo que tenho vindo a saber, essa repressão acontece sobretudo na Alemanha, embora a meu ver aconteça velada e silenciosamente noutros países também. O que observei até agora foi o facto de vários artistas que tinham espectáculos marcados em festivais, clubes e rádios alemães verem as suas actuações canceladas por terem, nalgum momento, expressado o seu apoio à Palestina ou mesmo por usarem roupa alusiva a essa luta.

Alguma desta repressão vinha já de há anos atrás: um dos casos mais próximos aos círculos artísticos de que faço parte aconteceu em 2018, quando o ://about blank, um clube de Berlim, cancelou, no dia anterior à data marcada, um evento do grupo Room 4 Resistance, um colectivo do qual várias artistas amigas fazem parte, que nessa semana apoiou publicamente o movimento DJs for Palestine. Esse movimento, do qual também fiz parte, pedia apenas o boicote de artistas, segundo as regras do BDS, a actuar em Israel.

Era um evento com três palcos, pelo que ficaram cerca de 10 artistas em tournée com uma data cancelada, sem serem remunerados. O mais curioso é que o clube mencionado acima é considerado um espaço de esquerda, mas o grosso das pessoas na sua estrutura são da corrente política Antideutsch, que surge na reunificação da Alemanha como dissidente de toda a esquerda antifascista ao declarar-se incondicionalmente solidária com Israel, numa demanda de abafar movimentos pan-árabes – e passando a considerar qualquer demonstração de apoio à libertação da Palestina como anti-semitismo, numa espécie de complexo de culpa do nazi-fascismo, ironicamente misturado com orientalismo internalizado.

Desde que Israel intensificou a sua agressão e embarcou no actual genocídio que perpetra em Gaza, mais casos têm acontecido, seja em Berlim, Munique ou noutros países. Exemplos mais sorrateiros noutros eventos Europa fora, incluem a repentina proibição de se levantar bandeiras no público – uma clara falsa neutralidade escondida sob a fachada do antinacionalismo, mas infelizmente apenas destinada a proteger turistas Israelitas de demonstrações pró-Palestina. Isto aconteceu recentemente em, que eu saiba, dois festivais de música electrónica, em Londres e aqui em Portugal.

Esta repressão tem sofrido, no entanto, uma retaliação: existem já vários boicotes informais aos promotores, festivais e clubes responsáveis por estes cancelamentos, assim como fundos populares para cobrir as remunerações de artistas cancelados. De referir que a um nível mais «mainstream», como muitos saberão, estes cancelamentos de actuações de artistas pró-Palestina na Alemanha, incluindo em eventos institucionais, não são de todo uma coisa nova.

No primeiro ano em que a Violet se apresentou na Festa estreou uma peça que partia de um «sample» de Grândola, Vila Morena, de José Afonso. E este ano? Vai surpreender o público com alguma referência histórica?

Saya, de origem palestiniana, afirma-se influenciada pelos mundos culturais e artísticos que a envolvem

Para este ano estou a preparar uma peça que «sampla» Carlos Paredes, quando se assinala 20 anos sobre a sua morte e quase 100 do seu nascimento. No meu set irei também referenciar a celebração dos 50 anos do 25 de Abril. É um desafio que acato com honra, mas algum (muito) medo. Vamos ver se anima a malta!

Um dos projectos em que trabalha desde 2015 é o da Rádio Quântica, uma rádio comunitária, transmitida pela Internet, que pretende divulgar projectos de músicos activistas que estão geralmente fora do «mainstream». Ao fim de quase nove anos, qual é o balanço dessa iniciativa?

Ajudar a fazer a Rádio Quântica viver (e sobreviver, que também é um desafio num contexto em que a importância da oferta cultural é relegada para milésimo plano) tem sido um trabalho colectivo muito recompensador. Já passaram por esta pequena estação centenas de programas de autor de artistas emergentes nacionais, podcasts de esquerda (como o Vivemos Numa Sociedade ou Os Comentadores, do AbrilAbril) e convidados internacionais de todo o mundo.

Este formato de rádio online comunitária, que existe em muitas outras cidades mundo fora, é o ponto de partida para uma série de iniciativas como espectáculos de música ao vivo, oficinas de música e até um pequeno festival anual. A Quântica é uma Associação cultural sem fins lucrativos e definitivamente sem um «modelo de negócio», o que dificulta a sua existência sob um sistema económico capitalista.

Manteve-se no ar até agora com o apoio dos ouvintes, de outras estruturas do movimento associativo (como o Teatro Praga, que já nos cedeu um espaço de estúdio durante anos) e também com apoios municipais e da Direcção-Geral das Artes. Quase a fazer 10 anos, já difundimos muita cultura, ainda somos um projecto independente – embora bastante precário. Continuaremos a luta.

Qual é a opinião que formou, ao longo deste tempo de colaboração connosco, sobre o papel político-cultural da Festa do Avante!?

A minha admiração pela Festa é antiga: em adolescente recebi uma EP oferecida pelo meu avô, com quem visitei a Festa pela segunda vez, numa idade em que absorver música e inspirar-me por ela era das coisas que mais me estimulavam. A primeira foi em criança mais pequena, com a minha mãe, desde sempre apoiante do PCP – boas memórias, mas distantes.

Oseias, de ascendência angolana, é conhecido pelos seus álbuns instrumentais

Com o aprofundamento da minha consciência política, com o despontar do meu percurso como artista, e agora com o meu trabalho próximo com a Festa do Avante!, vejo-a com um grande respeito: pelo impacto cultural e alcance social da Festa, pela sua inclusividade e solidariedade inabaláveis, pela generosidade e bom-humor de cada pessoa que constrói e faz a Festa.

Na verdade não consigo pensar num evento com uma relevância e espectro artístico, cultural e social comparável, muito embora sinta que deviam existir mais eventos culturais com tanta riqueza intrínseca. Um verdadeiro serviço público de cultura podia muito bem inspirar-se nesta Festa.

A cada ano vejo pessoas estrearem-se na Festa do Avante – falo tanto de fruidores como de artistas programados – e a sentirem-se parte de uma iniciativa verdadeiramente Enorme. Cria-se muita coisa na Festa, e isso acontece sobretudo fora dos palcos, no meio das pessoas que ali estão a fazer o que nascemos para fazer: estarmos juntos, comunicar, aprender, fruir cultura, partilhar as alegrias e as lutas.

Não quero fazer hábito de falar pelos outros, mas acho que somos muitos muitos mil gratos por que este encontro anual exista. Quem nos dera que quem nos governa pensasse como pensa quem faz a Festa do Avante!.

 



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