Manipulações e trapaças
A tomada de posse e a entrada em plenitude de funções do Governo foram o tema que dominou a actualidade noticiada nas últimas semanas. A forma como a moção de rejeição apresentada pelo PCP ao programa do Governo foi sendo tratada em cada momento daria um autêntico tratado de manipulação político-mediática.
Começando pelo início, recorde-se que esta não foi anunciada por iniciativa do PCP: a intenção de a apresentar foi tornada pública na sequência de uma pergunta dos jornalistas na conferência de imprensa após a reunião do Comité Central, a 13 de Março. Ao longo de quase um mês, esta declaração de transparência foi caricaturada como uma irresponsabilidade no espaço mediático, por comentadores e agentes políticos (categorias que se vêm tornando cada vez mais indistinguíveis), por não se conhecer ainda o programa do Governo, nem a sua composição.
A verdade é que, como era evidente, a composição, orgânica e o programa do Governo vieram traduzir o projecto e programa com que PSD e CDS se apresentaram a eleições. Quando a realidade, mais uma vez, confirma as razões do PCP, dá-se uma nova cambalhota mediática, cujo resultado mais grotesco terá sido a notícia do Correio da Manhã, que dava o PCP a reboque de outra força política, que, depois de alinhar pela onda mediática crítica ao PCP, essa sim, se juntou na rejeição ao programa do Governo.
Novo exemplo de engajamento político na imprensa surgiu na última semana, desta feita por via dessa publicação de referência que se chama Expresso. Titulava o semanário que o Governo do PSD/CDS já decidiu um corte de 1500 milhões de euros no IRS, aparentemente a partir de uma passagem breve no discurso do primeiro-ministro na Assembleia da República. Afinal, o corte no IRS que pretendem propor é de apenas 200 milhões de euros e dirigida a quem ganha bem acima da média. Depois da habitual reprodução acrítica por outras redacções, lá chegou o desmentido, com o próprio director do Expresso a denunciar um truque discursivo de Montenegro para justificar que o jornal se tenha espalhado ao comprido.
Se é verdade que o Governo quis alimentar, de forma dissimulada, a trapaça, não é menos verdade que esta só foi possível por o Expresso a ter lançado. A acreditar no próprio director do jornal, que diz terem sido cumpridas as boas práticas internas, nem sequer foi confirmado junto do Governo qualquer pormenor sobre o anúncio do primeiro-ministro. Ora, descartada a hipótese da incompetência ou falha grosseira, só se pode concluir que o Expresso foi o que é sempre: folheto propagandístico e correia de transmissão da política de direita. Nada de estranho, até tendo em conta que o seu fundador é o militante número um do partido do Governo, mas prestaria melhor serviço à verdade se o assumisse em vez de proclamar falsas independências.
Toda esta história tem algo em comum com os artigos de jornal que lembraram que as promessas de Montenegro só podem ver a luz do dia se tiverem o aval de Bruxelas: só surgiram depois das eleições. Serão casos de descoberta tardia ou opção editorial cirúrgica?