O Haiti não é aqui

António Santos

Precavei-vos, ó delicadas almas europeias! Protegei as vossas perplexas orelhas democráticas, que esta é uma crónica de zumbis e canibais: uma história sinistra e negra que há 220 anos arrepia até os menos sensíveis espíritos humanitários. Mas não vos apavoreis em vão por estas duas sólidas razões. Razão primeira: os rumores de que vos falarei vêm de longe do nosso jardim, algures além da lonjura do Mar Oceano, como aliás convém às terras dos selvagens e de todas as matérias-primas. Razão segunda: ficareis a saber também que a civilização envidou já os métodos costumeiros para que, nesta terra de mortos devorados e, de vez em quando, levantados, tudo mude agora de uma forma particular em, depois, que tudo fique na mesma.

Elon Musk avisa: os canibais invadirão os EUA! O bilionário partilha um vídeo que, assevera ele, mostra como os haitianos devoram os mortos nas ruas de Porto Príncipe. Seria admissível que os EUA, o Canadá ou até mesmo a Europa do jardim de Borell, assistissem passivamente a tanta barbárie sem enviar, rapidamente e em força, tropas quenianas para estabilizar o Haiti? É o Fardo do Homem Branco: desde 1992, o Haiti foi ocupado por 12 missões internacionais de todas as feições: militares, civis, policiais, humanitárias… Cada ocupação é sempre mais urgente que a anterior, porque, depois de cada missão civilizadora o Haiti fica ainda mais pobre, mais violento, mais caótico. Por exemplo, entre 2004 e 2017, a ONU não teve remédio a não ser ocupar o Haiti, mas quando saiu deixou uma epidemia de cólera que matou 80 000 pessoas. Ou, ainda outro exemplo, 80 por cento dos serviços públicos já têm de ser generosa e directamente administrados pelas ONG dos países ricos, mas 60% da população (6,3 milhões de pessoas) continua na pobreza extrema sem acesso a quaisquer serviços.

Não é de agora. Em 1804, o Haiti tornou-se na primeira colónia da América Latina e do Caribe a conquistar a independência. Um exército de escravos deixou de sê-lo impondo uma incrível humilhação militar à melhor armada do mundo «civilizado»: a de Napoleão. Desde essa altura que é indispensável aos países ricos regressarem periodicamente ao Haiti com novas armadas, missões, dívidas e muitas ONG. Foi, aliás, para «manter a paz» que os EUA ocuparam o Haiti entre 1915 e 1934; foi sempre para «salvar o Haiti» que uma série infindável de verdadeiros canibais sociais, em tudo iguais a Henry e a Moise, guardanapos com que o Banco Mundial e o FMI se limpam e logo descartam, destruíram a agricultura do Haiti, que agora importa dos EUA 82% do arroz que consome, que agora bate o recorde de 70 por cento de trabalhadores desempregados. E foi para «evitar o caos» que os EUA promoveram, há 20 anos, um golpe de Estado contra um presidente democraticamente eleito, Jean-Bertrand Aristide, que ousou trilhar a sendeiro de Louverture e Dessalines, rumo à soberania.

Em vésperas de eleições nos EUA, uma crise humanitária, política, internacional e migratória no Haiti é o pesadelo do Partido Democrata e o sonho do Partido Republicano. Este gostaria que a intervenção imperialista tardasse, aquele gostaria que ela se antecipasse. Ambos concordam, contudo, no essencial. O próximo ciclo de ingerência, saque e destruição está justificado pelos resultados de todos os anteriores: mortos nas ruas; não há escola; não há médicos; não há segurança; não há independência. Os verdadeiros canibais do Haiti não comem carne humana, mas devoram liberdade.

 



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