Receita canibal

Anabela Fino

«Pegue um inocente, dispa-o, pise-o, dê-lhe pontapés, mate-o, corte-o em bocados iguais e coloque-o na panela com um grande pedaço de manteiga, sal, pimenta, especiarias, cebolinha e salsa picada . Deixe fritar algum tempo, acrescente um pouco de vinho branco e um pouco de caldo. Quando o inocente começar a ferver, retire a panela do lume e sirva-o sobre uma toalha bem escorrida. Coma discretamente enquanto fala de outra pessoa.»

A receita da Cozinha canibal, de Roland Topor, um mestre da ilustração e escritor do século passado a quem não interessava o humor – «interessa-me o burlesco, o grotesco, não o humor» – está na ordem do dia nestes tempos de chumbo em que a humanidade parece condenada à barbárie.

O genocídio transmitido quase em directo pelas televisões, que nem chegaram a fazer o luto pelos mais de 75 jornalistas que já deram a vida em Gaza para que não passe em segredo a matança de palestinianos que Israel prossegue, dezenas de milhares de vítimas a que falta acrescentar os subterrados, feridos sem assistência médica porque os hospitais foram arrasados, ou desaparecidos no êxodo forçado, nestes dias de chumbo, dizia, lembro com Torpor o sonho de um humor que não faça rir ninguém, porque o riso é uma coisa séria.

Nestes tempos de chumbo, é a realidade, não a ficção, a exaltar o horror, como atesta o videoclipe publicado pela emissora estatal de Israel, Kan News, no X (antigo Twitter), em que crianças israelitas, todas muito caucasianas, celebram o genocídio de palestinianos na Canção da Amizade 2023, versão actual da Canção da Amizade escrita um ano depois da guerra israelo-árabe de 1948 em memória dos caídos em combate.

A nova versão foi criada por Ofer Rosenbaum, um «especialista em comunicação» que em 2022 assumia, em entrevista: «a minha especialidade é fazer coisas más (...) Foi assim que cresci na minha profissão (...) Tornei-me bom nesse domínio. Sou o melhor para fazer coisas más.»

Dizer tal coisa é dizer pouco. Atente-se na letra: «A noite de Outono cai na praia de Gaza. / Aviões estão a bombardear, destruindo, destruindo. / Vejam, as Forças de Defesa de Israel atravessam a fronteira / para aniquilar os portadores da suástica. / Dentro de um ano não haverá lá nada / E voltaremos para casa sãos e salvos. / Dentro de um ano, todos terão sido eliminados. / E então voltaremos para lavrar os nossos campos.»

Exalta-se a matança e a destruição, identifica-se os palestinianos aos nazis numa exploração vergonhosa do holocausto, afirma-se a ocupação como um direito, louva-se o «amor santificado com sangue». A Kan News acabou por retirar o vídeo, tal como o YouTube, mas a propaganda nauseabunda ficou registada como mais uma página negra da história de Israel. Não haja ilusões, cozinha canibal está na mesa.




Mais artigos de: Opinião

Mais força à CDU para combater o aumento do custo de vida

Inicia-se um novo ano e aí estão novos aumentos de preços de bens e serviços essenciais: dos alimentos à energia, dos transportes à habitação, são inúmeros os produtos e serviços que estão mais caros. As rendas vão subir 6,94%, o maior aumento desde 1994, que acresce aos valores proibitivos...

Metamorfoses

A chacina do povo palestiniano evidencia a verdadeira cara, não só do sionismo, mas do seu padrinho, o imperialismo norte-americano. E também da UE. Quase 4% da população da Faixa de Gaza foi morta, ferida ou está desaparecida, sob os escombros dos prédios e bairros inteiros arrasados pelas bombas de Israel. Nem Biden...

O problema não é de meios, é de opções

O Ministério das Finanças informou na passada sexta-feira que o saldo orçamental estabilizou em Novembro de 2023 face ao mês anterior, registando uma melhoria de 172 milhões de euros em relação ao valor verificado em Outubro. Com o saldo agora apurado o Estado registou um excedente orçamental em contabilidade pública de...

Três expressões

Há três expressões que, nos próximos meses, acompanharão o nosso percurso. Três expressões apenas que têm tradução concreta nos votos a que o povo português será chamado no ciclo eleitoral que se inicia já a 4 de Fevereiro na Região Autónoma dos Açores. Quando perante o povo português está colocada a questão de assumir...

Os noticiários e o negócio da doença

Os grupos privados de saúde esfregam as mãos com o «espectáculo» que diariamente percorre as televisões num carrossel de serviços encerrados e longas horas de espera nas urgências do SNS. É uma espécie de publicidade gratuita que lhes é fornecida em cada noticiário que explora o drama de quem desespera por uma resposta....