O papel progressista do jazz de José Duarte

Pedro Tadeu

José Du­arte fa­leceu no pas­sado dia 30, aos 84 anos

Uma lista de 12 factos que acon­te­ceram em 1966 acom­panha uma se­lecção ela­bo­rada por José Du­arte para en­qua­drar a es­treia, nesse ano, do pro­grama ra­di­o­fó­nico Cinco Mi­nutos de Jazz.

Cinco desses factos são mu­si­cais e in­cluem re­fe­rên­cias a obras de Shos­to­ko­vich (mú­sica sin­fó­nica); Be­a­tles (pop/​rock); Or­nette Co­leman, Miles Davis e John Col­trane (jazz).

Dois factos re­ferem-se a ou­tras artes: Tar­kovsky (ci­nema), Li­e­ch­tes­tein, Cha­gall, Warhol e Va­sa­rely, com estes quatro ar­tistas plás­ticos reu­nidos na mesma re­fe­rência.

Um facto as­si­nala um epi­sódio da Guerra Fria: a ita­liana Fiat as­sinou um acordo com a União So­vié­tica para cons­truir uma fá­brica de au­to­mó­veis na ci­dade de To­gli­at­ti­grad, assim cha­mada em ho­me­nagem ao di­ri­gente co­mu­nista ita­liano Pal­miro To­gli­atti.

Dois factos dizem res­peito à po­lí­tica por­tu­guesa: o anúncio do pri­meiro acto de pro­ces­sa­mento ju­di­cial sobre o as­sas­si­nato de Hum­berto Del­gado e a im­po­sição da lei mar­cial em Macau na sequência de um pro­testo de alunos e pro­fes­sores chi­neses, cuja re­pressão pro­vocou oito mortes, 200 fe­ridos e 62 pri­sões.

Dois factos re­ferem-se ao pró­prio Cinco Mi­nutos de Jazz. O pri­meiro marca a data da sua es­treia, a 21 de Fe­ve­reiro. O se­gundo é sobre aquilo que José Du­arte, na edição de 2019 de um livro ho­mó­nimo, des­creve como sendo «as pri­meiras men­sa­gens apó­crifas» que na al­tura co­meçou a re­ceber e que ten­tavam acabar com uma emissão que du­raria 57 anos, até à morte do seu autor, no pas­sado dia 30 de Março de 2023.

Des­creve José Du­arte que essas men­sa­gens o clas­si­fi­cavam «como amante de ba­tu­ques e ra­cista e até “apre­ci­ador da cul­tura dos pretos que pu­nham em risco a uni­dade na­ci­onal”».

A ir­ri­tação com que o re­gime olhava para o jazz, e que fez da sua di­vul­gação e or­ga­ni­zação em Por­tugal um acto de re­sis­tência an­ti­fas­cista, levou José Du­arte a con­cluir esse livro desta ma­neira, no seu es­tilo de es­crita que ten­tava si­mular em texto o swing pró­prio do jazz:

          «cada sim­ples Cinco foi outro pau­zinho

          na en­gre­nagem

          cada um uma opor­tu­ni­dade ar­ris­cada

          para deixar men­sa­gens im­plí­citas

          contra o poder di­ta­to­rial»

Olhamos para a es­colha desses 12 factos e temos, por­tanto, todo um pro­grama po­lí­tico-cul­tural:

- de­fesa da di­ver­si­dade mu­sical co­lo­cando em pé de igual­dade a im­por­tância da mú­sica sin­fó­nica, do jazz e da pop;

- de­fesa da li­ber­dade cri­a­tiva co­lo­cando no mesmo pa­tamar cri­a­dores de artes, na­ci­o­na­li­dades e ide­o­lo­gias muito di­versas;

- de­fesa da paz in­ter­na­ci­onal e da luta so­cial através do exemplo da fá­brica da Fiat aberta na União So­vié­tica e da ho­me­nagem ao his­tó­rico se­cre­tário-geral do PCI;

- rei­vin­di­cação de jus­tiça ilus­trada pelo as­sas­si­nato pela PIDE de um opo­sitor a Sa­lazar;

- re­cusa do co­lo­ni­a­lismo através do exemplo da re­pressão pelas au­to­ri­dades por­tu­guesas sobre chi­neses em Macau;

- de­núncia do ra­cismo através das acu­sa­ções re­ce­bidas contra o pro­grama.

O 25 de Abril não mudou os prin­cí­pios e o cariz de re­sis­tência de­mo­crá­tica que a di­vul­gação do jazz com­portou, não só na in­ter­pre­tação de José Du­arte, mas por toda a sua ge­ração de di­vul­ga­dores na im­prensa – per­demos José Du­arte, mas já tí­nhamos per­dido Ma­nuel Jorge Ve­loso (que foi meu ca­ma­rada de re­dacção quando tra­ba­lhei aqui no Avante!), Luís Villa-Boas, Du­arte Men­donça e Paulo Gil. Restam poucos.

No con­gresso de jor­na­listas de 1998, José Du­arte pro­ta­go­nizou outro dos muitos epi­só­dios da sua vida de mi­li­tante pela causa po­lí­tico-cul­tural do jazz: fez uma in­ter­venção onde de­fendeu o papel do jor­na­lismo em de­fesa da «paz e igual­dade na in­for­mação para Ou­tras Artes, Ou­tras Mú­sicas» e que «o papel do jazz é um papel de per­ma­nente cri­a­ti­vi­dade, de cons­tante im­pre­vi­si­bi­li­dade, de in­can­sável ima­gi­nação, papel de sau­dável ico­no­clastia, in­ves­ti­gação e falta de res­peito pelo óbvio, papel, pois, da frente, papel pro­gres­sista».

 



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