Farol mas pouco

Anabela Fino

A resolução do Senado norte-americano que condena a Rússia pela invasão da Ucrânia, aprovada por unanimidade, começa com um «considerando» assaz elucidativo da forma como os EUA vêem o mundo: «considerando que os Estados Unidos da América são um farol para os valores da liberdade, democracia e direitos humanos em todo o mundo...». Nem mais.

Para os cem membros do Senado que subscreveram o texto, republicanos e democratas, as guerras conduzidas pelos EUA contra a Sérvia, Iraque, Afeganistão, Síria, para já não falar no apoio à Arábia Saudita contra o Iémen ou a relação privilegiada com Israel que há décadas agride e coloniza a Palestina, não constituem qualquer problema nem configuram qualquer crime. Embora não reconheçam ao Tribunal Penal Internacional (TPI) legitimidade bastante para julgar crimes de Israel, a quem Washington fornece anualmente 3,8 mil milhões de dólares em ajuda militar, e muito menos para julgar cidadãos norte-americanos, os EUA querem ver o TPI a julgar a Rússia por alegados crimes de guerra.

O que está em causa não é obviamente a unanimidade na condenação da guerra. O que está em causa é a unanimidade na hipocrisia que leva os cem magníficos senadores a arrogar-se o direito de levar à Justiça (?) «estrangeiros» acusados de crimes de guerra e de crimes contra a humanidade, quando em 2002 o Congresso norte-americano aprovou o American Service-Members Protection Act, («Acto para a protecção dos membros do serviço Americano»), uma lei promulgada por George W. Bush, que contém uma cláusula chamada Lei de Invasão de Haia, segundo a qual se um cidadão americano ou de um país aliado for detido pelo TPI, os militares dos EUA podem usar a força armada para o libertar. Mais, o TPI agora chamado a julgar os russos é o mesmo que os EUA têm reiteradamente boicotado, exercendo abertamente chantagem sobre 100 países que o reconheceram, obrigando-os a assinar acordos bilaterais de imunidade garantindo que não entregarão cidadãos norte-americanos ao TPI, sob pena de perderem a ajuda (melhor seria chamar-lhe suborno) que recebem dos EUA.

Como se isto fosse pouco, o Senado deste «farol para os valores da liberdade, democracia e direitos humanos» acaba de aprovar o maior orçamento militar da história: 858 000 milhões de dólares para 2023, um aumento de 10% em relação ao anterior e mais 45 000 milhões do que a astronómica quantia solicitada por Biden.

O foco está bem centrado, como disse o secretário da Defesa, Lloyd Austin: «A China é o único país que garante em simultâneo a vontade, e um crescente poder, para reformular a sua região e a ordem internacional para garantir a suas opções autoritárias. Deixem-me ser claro: não deixaremos que isso aconteça».

É pouca luz para tanta ameaça.




Mais artigos de: Opinião

A minha primeira Startup

A quem tenha dúvidas de que a ofensiva ideológica do capitalismo tem linhas e procura ter efeitos a partir do berço e não lhes sejam suficientes os exemplos do filme de animação Zootrópolis, em que o animal que representa o funcionário público é uma preguiça – adorável, é certo, mas uma preguiça que há-de confirmar a...

Mais um «caso» e nova deriva

A semana passada, logo após o Tribunal Constitucional (TC) considerar que a Lei que reestrutura o Ponto Único de Contacto para a Cooperação Policial Internacional não viola a Constituição(!), o PR promulgou-a. A lei transfere os gabinetes da Europol e Interpol da responsabilidade da Polícia Judiciária (PJ) para a tutela...

O «putinista» Tchaikovsky

Um «jornal de referência» dito liberal (Guardian, 8.12.2022) publica mais um apelo à censura cultural internacional vindo do ministro da cultura de Zelensky, Tkachenko: «boicotar a cultura russa é um passo importante. Não estamos a falar em cancelar Tchaikovsky, mas antes de fazer uma pausa na interpretação das suas...

Casa roubada...

O que se passa entre os «aliados» dos dois lados do Atlântico merece reflexão. A UE, após aplicar infindáveis pacotes de sanções que, mais do que sancionar a Rússia, sancionam a própria UE; após assistir muda e queda à sabotagem dos gasodutos NordStream, encomendados e pagos pela Alemanha; após ver as suas empresas a...

Ver a casa por um canudo… Não tem de ser assim!

Todos os dias abundam nas notícias títulos como «subida dos juros afecta famílias», «preços das rendas continuam a aumentar», «valores das habitações aceleram». É uma amostra de como estão as coisas. O acesso à habitação é um direito constitucional, mas as opções dos sucessivos governos PS,...