As cheias e a urgência de corrigir opções erradas na gestão do solo e da cidade
As recentes cheias em várias regiões o País voltaram a trazer para primeiro plano a magna questão da falta de planeamento e de medidas de ordenamento territorial. Para corrigir o problema é preciso «arrepiar caminho nas políticas de urbanismo e ordenamento do território», alerta o PCP.
Há uma submissão das políticas de uso de solos aos interesses financeiros
O tema esteve em debate no Parlamento, dia 14, suscitado pela bancada comunista em declaração política proferida pelo deputado Duarte Alves, que considerou que a raiz do problema das cheias, com consequências gravíssimas na vida das populações, vai muito para lá das alterações climáticas, tendo muito a ver com opções políticas que vêm de um passado remoto.
«Não negamos que as alterações climáticas tenham aumentado a frequência destes desastres, mas as alterações climáticas têm costas largas quando o poder político se quer desresponsabilizar das opções tomadas ao longo de décadas, num problema que não é novo», afirmou o parlamentar do PCP, depois de ter começado a sua intervenção com palavras de solidariedade para com todas as vítimas dos acontecimentos extremos recentemente verificados no País e que causaram «gravíssimos prejuízos nas suas vidas, nos seus negócios, nos seus bens e habitações». Palavras iniciais que não se ficaram pela solidariedade, adquirindo também expressão de reconhecimento e apreço pelo empenho e acção dos bombeiros e outros agentes da protecção civil, forças e serviços de segurança, trabalhadores das autarquias e de diversos serviços públicos na resposta aos problemas.
Problemas cuja origem reside, no fundamental, nas políticas erradas de planeamento do território, fruto de opções do poder político . Duarte Alves socorreu-se a este propósito de dados relativos à Área Metropolitana de Lisboa, no período compreendido entre 1995 e 2007, que ilustram bem a natureza do problema e o que lhe está na origem: a edificação em áreas inundáveis por cheias progressivas cresceu 51%; a edificação em áreas inundáveis por cheias rápidas cresceu 39%; a edificação na faixa litoral dos 500 metros cresceu 23% , e a edificação em vertentes perigosas cresceu 72%.
Corrigir o que está mal
Torna-se por isso imperioso «inverter a lógica de construção em leito de cheia, e, nas zonas de cheia onde já há ocupação, não a densificar», sustentou o deputado do PCP, antes de pormenorizar outra linha de acção que urge incrementar: «”dever de prevenir o risco”, e realizar investimento público que possa mitigar esses riscos, como eixos de drenagem, corredores verdes, parques lineares ao longo de ribeiras e rios».
E para isso, acrescentou, é preciso «permitir aos municípios que possam recorrer a fundos comunitários para estes investimentos, em vez da sua exclusão, no âmbito dos quadros comunitários».
Apontada por si foi igualmente a necessidade de «respeitar os instrumentos de planeamento, em vez de serem atropelados sempre que um interesse económico se sobreponha». É disso exemplo a «construção do Hospital da CUF em Alcântara», criticou Duarte Alves, para quem é também necessário «investir na protecção civil», dando nomeadamente condições laborais e sociais a todos os trabalhadores que desempenham funções nesta área.
Indo mais ainda ao fundo da questão, o parlamentar comunista sublinhou que é preciso, acima de tudo, que se «cumpra o princípio de que cabe ao Estado e às autarquias locais a gestão do solo e da cidade, e não aos interesses do capital financeiro, que, pela sua natureza, tem como única preocupação o lucro imediato».
A exemplar gestão CDU nas autarquias
Em resposta a Carlos Magalhães Pinto (IL) e Pedro Pessanha (Chega), que puseram em dúvida a qualidade do trabalho da CDU em municípios sob sua gestão, Duarte Alves afirmou o grande orgulho dos comunistas pelo papel que a Coligação teve e tem no ordenamento do território desses concelhos. E aludindo aos casos concretos trazidos a debate, lembrou os exemplos de Almada, Setúbal e Loures e das obras aí feitas que resolveram ou diminuíram drasticamente os efeitos das cheias, que eram recorrentes.
Sem resposta não ficou também o deputado do PS Hugo Pires, que quis pôr em causa o notável trabalho, pioneiro, da CDU, na recuperação das Áreas Urbanas de Génese Ilegal (AUGI): «Os bairros já existiam antes do 25 de Abril, foram da responsabilidade do regime fascista», lembrou Duarte Alves, que, pondo os pontos nos ii, tratou de sublinhar que «foi a CDU quem teve um papel decisivo» quer na recuperação desses bairros quer, posteriormente, na criação da lei que os enquadrou e permitiu a sua legalização.
Tragédias têm causas e responsáveis
O problema das cheias não é novo, como bem se sabe, como não o é a tentativa do poder político de sacudir a água do capote sempre que tal acontece e, não raro, ganha contornos dramáticos.
Assim foi durante a ditadura fascista, quando, por exemplo, nas cheias de Novembro de 1967, mais de 700 pessoas perderam a vida e 20 mil casas ficaram destruídas.
«Cheias que foram o resultado de condições de vida indignas, da falta de qualquer planeamento urbanístico, da falta de infra-estruturas básicas, onde a cultura de risco era inexistente, porque a vida dos pobres valia de pouco para o regime fascista», recordou Duarte Alves, salientando que essa era a época dos «planos parciais de urbanização». E o que eram estes planos? Segundo o deputado do PCP, eram «uma ficção de ordenamento», já que a criação de núcleos urbanos se destinava a uma minoria da população, enquanto a «maioria dos que migravam do Interior do País para fugir à miséria» eram empurrados para «periferias não urbanizadas onde floresciam os bairros de barracas».
Uma realidade nova emergiu com o 25 de Abril – e com a Revolução nasceu a primeira Lei dos Solos –, mas cedo os governos da política de direita de PS, PSD e CDS «trataram de reverter a lógica progressista dessa primeira lei de solos», lamentou Duarte Alves, lembrando que o fizeram, desde logo, «com a promoção de uma lógica centrada nas grandes expansões urbanísticas, sem controlo, com a banca (já privatizada) a beneficiar da captação de renda fundiária associada ao imobiliário existente ou expectante».
Mais tarde, detalhou, sobreveio a «lógica da exploração dos centros urbanos, para a especulação e o turismo desenfreado, complementada com a expulsão dos residentes através da lei dos despejos».
«Mudaram-se os tempos, mudaram-se as vontades do capital financeiros e do seu apetite pela renda fundiária», constatou Duarte Alves, antes de concluir: «O que não mudou foi a submissão das políticas de uso de solos aos interesses financeiros, com o PS, PSD e CDS a apostarem em lógicas de lucro máximo para promotores imobiliários e banca, descurando uma política de planeamento, de ordenamento, de respeito pela natureza e os seus limites de ocupação».