As Raízes do Território

Sérgio Dias Branco

Várias obras literárias de José Saramago foram adaptadas ao cinema

Quando José Saramago escreveu A Jangada de Pedra, publicado em 1986, o livro parecia responder a um contexto específico: as condições desfavoráveis de adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia (CEE), que marcaram a discussão política em Portugal nesse tempo. A adaptação do romance ao cinema, da autoria do cineasta holandês George Sluizer, foi feita 16 anos depois e é fiel ao espírito da obra original. No entanto, o episódio da separação de Portugal e Espanha, como Península Ibérica, do resto da Europa, aparece no filme noutro contexto histórico.

Para o realizador, a questão da adesão já não se discutia (debatia-se, então, a integração capitalista desenhada pelos tratados fundadores da União Europeia), mas havia outras questões, «como a da fortaleza que a Europa construiu à sua volta, fechando as portas aos países que em tempos explorou». Esta referência remete para as relações coloniais que tinham existido entre as potências europeias e os povos da América e de África e também da Ásia. Não é por acaso que a Península Ibérica, que passa a ser uma ilha na deslocação física que sofre, num tempo pós-colonial, permanece uma espécie de ponte e estaciona entre a América do Sul e a África. A narrativa aponta assim para uma reflexão mais vasta sobre a história da humanidade. As raízes do território estão nos povos, na história da vida social dos seus habitantes, na que trazem consigo quando vêm de outras paragens e que acrescenta a uma história maior, em desenvolvimento. As personagens, três homens, duas mulheres, um cão, parecem inicialmente tão à deriva como o pedaço de terra onde estão. Mas vão percebendo que o seu rumo é o seu encontro, através do qual descobrem quem foram, quem são, e quem poderão vir a ser.

Aquando da estreia desta que foi a primeira adaptação de um escrito de Saramago ao cinema, Sluizer explicou que fez uma «leitura de humor e ironia», distante da «veemência» utilizada pelo escritor. A Jangada de Pedra surge no ecrã de forma mais doce e menos mordaz. A co-argumentista Yvette Biro explicou que ela e Sluizer se concentraram no valor poético da narrativa. O orçamento impôs limitações técnicas nos efeitos visuais, mas esses efeitos têm, de qualquer modo, um uso que se limita à definição de uma atmosfera em que o fantástico irrompe na paisagem. O essencial é o trajecto das personagens no interior de um mundo refeito aos seus olhos, mesmo faltando alguma densidade.

A Jangada de Pedra foi mostrado no passado dia 8 de Outubro numa sessão integrada no «Ciclo Saramago», organizado pela Casa do Cinema de Coimbra, local que acolhe a iniciativa, e pelo PCP, com o apoio da Fundação José Saramago. O ciclo incluiu O Homem Duplicado (Enemy, 2013) de Denis Villeneuve a 24 de Setembro, Embargo (2010) de António Ferreira a 1 de Outubro, e incluirá A Maior Flor do Mundo (A Flor máis grande do mundo, 2007) de Juan Pablo Etcheverry e José e Pilar (2010) de Miguel Gonçalves Mendes a 15 de Outubro, sempre com conversas ou comentários depois da projecção das obras.

Estes filmes, quatro adaptações de textos literários do escritor e um documentário, contribuem para a divulgação e o debate em torno da obra de um militante comunista, escritor universal da língua portuguesa e um dos mais destacados intelectuais comprometidos do Portugal democrático, pós-25 de Abril de 1974. A relação de Saramago com o cinema deu origem a objectos atravessados pelo seu olhar sensível, penetrante, inquieto, crítico, profundamente humano, atento aos explorados e injustiçados da terra, sobre a história e o estado do mundo. Da literatura ao cinema, permanece a ideia da cultura como exercício livre da criatividade, com um assumido valor humanista.




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