O primeiro mês

António Santos

Passou um mês desde que o Supremo Tribunal dos EUA destruiu a protecção federal à interrupção voluntária da gravidez. Há um mês, com um simples assomo de papel, seis juízes não eleitos sobrepuseram-se à opinião de 70 por cento da população e abriram de par em par os portões da barbárie, soltando, contra 40 milhões de mulheres, velhos mastins patriarcais que se julgavam extintos. Estas histórias são a infância decrépita de um terror que promete crescer.

No Ohio, uma menina de 10 anos foi violada e engravidou. Não consta que o Ohio figure na lista dos países patrocinadores do terrorismo, mas este Estado é um dos que não abre excepções para o aborto. Mesmo que se trate de uma violação. Mesmo que a grávida tenha 10 anos. Mesmo que a vítima possa morrer se não abortar. Foi preciso fazer várias horas de carro para levar a criança ao Estado do Indiana. A médica que lhe prestou os cuidados necessários enfrenta agora uma campanha de perseguição, com ameaças de morte e vários processos judiciais.

Para evitar casos semelhantes, vários Estados como o Arkansas estão a aprovar leis que criminalizam quem ajudar uma mulher ou uma menina a viajar até outro Estado para interromper a gravidez. Como explicou um tal senador Jason Rapert, que não parece constar da lista dos criminosos mais procurados, «muitos de nós defendemos legislação para parar o tráfico humano. Porque é que deixamos passar quem trafica mulheres para fazer dinheiro com o turismo do aborto?».

Em vários outros Estados, como no Oklahoma, que à data da redacção deste artigo não enfrentava sanções internacionais, adoptaram-se Leis de Caçadores de Prémios para caçar as mulheres que abortem e os que as ajudem a ir abortar a outros Estados. Quem fizer uma denúncia pode receber até 15 mil dólares. Algumas empresas já se especializaram neste novo e lucrativo ramo.

Já no Texas, que ainda não está na mira de uma intervenção humanitária da NATO, as leis contra o aborto são tão rígidas que os hospitais pararam de fazer abortos em casos de emergências médicas. As mulheres que se deparam com uma gravidez ectópica (uma gravidez fora do útero que não evolui) são enviadas para casa. As mulheres que se dirigem às urgências com rebentamentos de águas muito prematuros são aconselhadas a esperar em casa por um aborto espontâneo.

Em todos estes Estados, milhões de mulheres, que ainda não começaram a receber armas da União Europeia, deixaram de ter acesso a medicamentos capazes de interromper uma gravidez. É o caso do metotrexato, um fármaco de que dependem doentes com cancro, artrite e várias doenças auto-imunes. É também o caso da pílula do dia seguinte, que em Estados como o Louisiana, onde o aborto está equiparado ao homicídio, pode ser a arma do crime.

Se a América de Dobbs já é assim na infância, é natural que sintamos necessidade de recorrer à ficção para conseguir imaginar como poderá ser na maioridade. Há uma terrível lição que devem aprender os que incrédulos estariam há um ano se alguém lhes contasse que seria assim o futuro: nenhuma distopia imaginada pela literatura, por mais desumana e delirante, está fora do horizonte imediato do capitalismo tardio.

 



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