Que desporto temos? Que desporto queremos?
Portugal ocupa sempre os últimos lugares europeus quanto à prática desportiva
A situação actual do desporto em Portugal é claramente demonstrada pelo lugar que o país ocupa nos rankings internacionais em relação às suas diferentes formas de actividade. Neles, desde que elaborados à escala internacional europeia, os lugares que ocupa estão sempre entre os piores quatro, no fundo das listas.
Quais as razões desta situação? Em termos sintéticos, pode dizer-se que são múltiplas, complexas e mais ou menos antigas. A velha consideração de que o corpo é coisa secundária em relação ao espírito continua a prevalecer, mantendo-se a concepção dualista do ser humano que desvaloriza o corpo, naturalmente sob novas formas, mas marcando fortemente a cultura e afectando de forma essencial a concepção educativa predominante nas escolas e nos ministérios. Aí, a preocupação intelectualista do ensino sobrepõe-se por inteiro à tão badalada saúde, levando os alunos a uma vida escolar (afinal a sua vida) insalubre e geradora de doenças graves, como é o caso da epidemia da obesidade e da diabetes tipo II.
A situação da maioria dos alunos é de, pelo menos, 7/8 horas de imobilidade diárias, chegando, no entanto, a ser de 10 horas para muitos deles.
Esta é, evidentemente, uma das causas mais sérias do atraso da formação desportiva da população, a que evidentemente duas ou três sessões semanais de Educação Física não podem fornecer resposta, pois o tempo real médio semanal que elas representam pouco passa dos 15 minutos/dia. Junta-se a isto um desporto escolar miserabilista, essencialmente preocupado em detectar os futuros campeões, coisa que só por puro acaso e em número irrisório aconteceu até agora, mas limitado problematicamente unicamente a 20 por cento da população escolar. Nas escolas do 1.º Ciclo mantém-se o escândalo gritante da ausência da Educação Física.
A esta situação deve juntar-se a gravidade da estrutura urbanística das cidades, que não tomaram e continuam a não tomar em consideração as necessidades de movimento das crianças antes de tudo, mas também do resto da população (especialmente dos idosos, das mulheres e dos portadores de deficiência). Dominadas pela ganância da especulação fundiária, os espaços livres junto das habitações e a sua falta de equipamento dinamizador, são reduzidos ao mínimo.
A antiga reivindicação da prática desportiva no interior da empresa, expressa nas duas primeiras Leis de Base do Desporto, desapareceu pura e simplesmente daquela que está em vigor.
Os clubes desportivos populares e de bairro, afinal os «fabricantes» essenciais do desporto federado que o País possuí, não vêem o seu trabalho devidamente reconhecido, pelo contrário, tendo de defrontar exigências que procuram fazer deles puras empresas privadas, tendo de superar sérios obstáculos e dificuldades, levando muitos deles à renuncia e à inactividade.
Todavia, apesar de tudo isto ser grave, aquilo que deve ser considerado como o factor decisivo para o atraso é constituído pelas condições sócio-económicas da população, marcadas pelos baixíssimos ordenados, o desemprego, a precariedade e as próprias condições de trabalho. É que praticar desporto custa dinheiro e muitas são as famílias que não conseguem que os seus filhos se dediquem a qualquer tipo de prática (alguns estudiosos consideram que mais de metade das famílias não possui meios financeiros para o fazer).
Tudo isto surgiu por acaso, devido às características do País, ou obedece a uma intencionalidade política bem definida? Convém não se abusar da ingenuidade: está em marcha, desde há várias décadas, um processo de estruturação de um novo mercado das coisas desportivas. Não é só na indústria do futebol que se verifica a mercantilização do espectáculo desportivo profissional. Tal como vem acontecendo com o Serviço Nacional de Saúde, que tem de defrontar a força representada pelo grande capital em substitui-lo pela privatização geral dos serviços, o desporto, seja qual for a concepção que dele tenhamos, sofre o mesmo ataque: a escola pública deve privatizar-se, os clubes desportivos transformados em empresas, o desporto escolar passar para a iniciativa privada sob várias formas e, a cereja no topo do bolo, a actividade física passar a ser da exclusiva responsabilidade de cada indivíduo.
Um ministro gritou uma vez na Assembleia da República «quem quer saúde, paga-a». Pode dizer-se: quem quer desporto, paga-o. O que constitui uma traição inaceitável da Constituição da República.