Uma Pequena Luz Vermelha e outros poemas, de João Pedro Mésseder

Domingos Lobo

A poesia de João Pedro Mésseder inspira-se nos dias levantados de Abril

«Há dias que nascem sem um nome

e é preciso baptizá-los sem demora

com um nome de flor ou de miragem.»

J.P.M.

 

A poesia portuguesa é um dos refúgios mais intensos e originais da nossa actual literatura. Na nossa melhor poesia habitam as paixões, a dor, o júbilo dos dias altos e solares como os de Abril, o interior das sombras, a monódia mais íntima da música das palavras, a inquietação, os exorcismos festivos/ da memória. É na poesia que a língua, esta nossa «língua de cultura» como nos diz Mário de Carvalho, ganha asas e recortes de virtuosismo semântico inusitados e onde melhor respira. Há sempre uma luz que cintila algures quando o poeta canta.

Há muito que João Pedro Mésseder é uma dessas vozes, construtoras de uma poética que nos traz de longe os rumores mais fundos e vibrantes da inquietude, dos invisíveis lastros do clamor, dos labirintos sensitivos de um olhar que se retém crítico na abordagem das derivas do mundo agreste que nos coube viver, das suas declinações, dos ventos da barbárie que nos açoitam e a um tempo nos convoca para a resistência, para a denúncia e para a reflexão. A poesia de Mésseder contém esse discurso de raiz como que em austera conjunção de berço. As palavras graves estão lá no rigor dúctil do seu espaço de afirmação e de combate que as enforma, mas é da festa de Abril e Maio que nos falam, sem olvidar os meses/anos da longa caminhada: Desgraçada/-mente nascemos nesse tempo/crescemos triste/-mente/por dentro de anos tão ocos/como cheios de pedras aceradas/e de vozes tantas vezes inaudíveis […] Que o clamor das ruas de novo me visite/como então as visitei e percorri/com a morte em sentido contrário,/como então as visitei e percorri/em busca do sol/que no quarto mês do ano renasceu/vestido de vermelho.

Percorremos este clamor alto das palavras, seu movimento rumoroso de sol, de gente pelas ruas livres da cidade já sem medo à chuva ou às tempestades, descobrindo espantados a segunda infância/de um país de sangue antigo.

Poeta é, diz-nos Manuel Gusmão, aquele que constrói ou compõe um mundo de palavras e de possíveis verbais, com o qual reconfigura, faz, desfaz, refaz e acrescenta o mundo de mundos que é o nosso. João Pedro Mésseder neste seu livro Uma Pequena Luz Vermelha e outros poemas, não só reconfigura, na sublimidade de um apodítico discurso, através de uma poética da melhor colheita, um mundo e um tempo que foram nossos, os dias levantados, matriz da festa colectiva, da democracia e da justiça social, transpondo essa memória, mesmo quando ferida, para os dias amargos que vivemos, para os rumores regressivos que os infestam como modo de afirmação e de combate, com a autoconsciência de quem usa as palavras para denunciar as sombras avoengas que nos querem cercar. Os poetas, os que detém esse raro sortilégio, sempre souberam erguer a voz e apontar, por entre as silvas, a pequena luz bruxuleante.

Serão os dias insanos, já o demiurgo Pessoa o afirmava, propícios ao aparecimento de grandes vozes poéticas, da liberdade livre de Rimbaud, mas sobretudo de uma poesia de testemunho, de resistência, de inconformismo e de insubmissão? Os poemas constantes deste livro de Mésseder, mesmo os que já vêm datados de tempos pretéritos, contêm hoje uma transcendência, uma actualidade inesperada face aos acontecimentos e aos maus presságios que prenunciam. Daí que o poeta se erga, cante e nos convoque sem temor: Em Maio não comer/as cerejas ao borralho/pois é já um tempo, Maio,/de alamedas indignadas,/o tempo certo e aprazado/ p’ra inventar de novo o verão. Este discurso, estes versos, que jubilosamente resistem a ventos adversos, são-nos hoje necessários para armarmos de palavras claras e justas os dias do futuro.

 

Uma Pequena Luz Vermelha e outros poemas, de João Pedro Mésseder – edição Página a Página




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