Mas as Crianças, senhores!…

Correia da Fonseca

De modo nenhum será de estranhar que os diversos canais de TV, isto é, os diversos operadores de televisão, se esforcem por atrair e fixar audiências, pois bem se sabe que do volume de telespectadores captados decorre a sua própria capacidade de captarem contratos de publicidade, isto é, receitas, o peculiar oxigénio que lhes assegura a sobrevivência. Nem de modo nenhum será chocante que para a consecução desse objectivo legítimo adoptem específicas armas, com perdão da palavra um pouco deslocada neste contexto totalmente pacífico. Mas, sendo mais ou menos consensual que tudo nesta vida tem ou deve ter limites, não será de surpreender que essa regra geral também aqui se aplique. E, passando do geral para o particular, será compreensível que essa aplicação inclua um caso concreto, o da utilização de crianças como tema de reportagens, pois bem se sabe que esse caminho vai provavelmente direitinho para o coração de milhares de telespectadores, sobretudo de telespectadoras.

O mínimo

Ora, aconteceu em dia recente um caso tristíssimo que a televisão acompanhou aliás no cumprimento do seu dever de informar: uma criança caiu a um poço, foram dificílimos os esforços para a socorrer, tudo acabou da pior maneira com a criança já sem vida quando enfim foi retirada da profundidade que seria superior a trinta metros. A TV esteve lá graças a um ou mais dos seus canais informativos, com essa presença cumprindo o seu dever de informar. Porém, o que não apenas excede esse dever como passa para a área da exploração dos sentimentos dos telespectadores tocados pela tragédia que aniquilava uma vida tão jovem foi a persistência da reportagem nos aspectos mais dramáticos do caso, como se fosse natural e legítimo o seu aproveitamento como matéria-prima do comércio televisivo. Bem sabemos pela nossa frequente experiência que, para um certo tipo de TV e de informação, aproveitamentos destes são preciosa matéria-prima, mas sucede que essa espécie de gula perante as desgraças não pode, não deve, contar com o nosso tácito aplauso ou com o dividendo contido no peculiar e doentio apetite perante a tragédia acontecida. Os casos de morte ou, mais amplamente, de desgraças de vária ordem, não podem ser usados como filões para exploração mediática. Escreveu-se «não podem» é claro que como se escrevesse «não devem». E a circunstância de, no caso desta notícia, se tratar de uma criança agrava o delito. Pelos vistos, a informação que trata as desgraças como mercadoria não recua nem perante as crianças (e aqui se justificará o uso em título de um arquiconhecido verso de Augusto Gil). Pelo que se justifica pelo menos que ela, a informação, cresça no reconhecimento dos seus limites; designadamente que poupe as crianças atingidas por desastres e não as use como fonds de commerce. É o mínimo que se lhe pede.




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