Hipólito, de Eurípedes, pela Companhia de Teatro de Almada

Domingos Lobo

O grande teatro ainda faz sentido no nosso tempo

Rui Mateus

«Poderá o mundo de hoje ser, apesar de tudo, reproduzido pelo teatro?», questionava-se Frederico Dürrematt, em finais da Segunda Guerra Mundial. Podia o teatro reproduzir de forma veemente os dramas, o estupor, a pérfida desumanização que essa guerra (todas as guerras?) representou, de modo a contribuir com incisiva sagacidade para mudar o homem de forma a intuir-lhe, como defendia Aristóteles, traços instigadores da sua condição?

Do mesmo modo que Dürrematt, podemos hoje questionar-nos sobre se os grandes textos clássicos, a tragédia grega, ao caso, ainda é passível de trazer algo de novo às sociedades ocidentais corroídas pela usura, corrupção, chocantes desigualdades; se a moral implícita nos textos de Eurípedes, Sófocles e Ésquilo, o temor dos deuses, a dimensão formativa dos cidadãos e a sua participação activa nos problemas do país, no entendimento da justiça, da responsabilidade e da culpa, ainda fazem sentido?

Se nós hoje somos donos do nosso destino, se o livre-arbítrio faz parte da nossa condição, se o poder dos deuses não domina em absoluto os nossos actos, dado que nos tornámos responsáveis por eles, a verdade é que persistem nas sociedades contemporâneas muitos dos males que impedem que os cidadãos, nós todos, sejamos mais interventivos, que exijamos políticas mais justas, mais livres e igualitárias.

A tragédia, esta Hipólito, de Eurípedes, representada pela primeira vez em 428 a.C., e encenada por Rogério de Carvalho para a Companhia de Teatro de Almada, ainda traz na limpidez de um texto sublime sobre os males do mundo, em que o amor e o poder se constituem traves elementares do discurso, elementos que nos devem levar a reflectir sobre os dias que vivemos: a virtude, a integridade, a rectidão, a vontade de lutar por tempos mais justos são erros que devemos expiar, ou esses devem ser valores a recuperar para que possamos regressar, sem trágicos desígnios, à nossa condição?

Hipólito, enteado de Fedra, não a ama, embora esta esteja por ele apaixonada, um amor arrebatado, insano, que a conduzirá à autodestruição. Entre a recusa de Hipólito, que nunca pensou em Fedra como amante, e a paixão obsessiva de Fedra, interpõem-se as deusas Afrodite e Ártemis. A paixão de Fedra é causada por Afrodite, deusa do amor, em oposição dialéctica a Ártemis, deusa da vida selvagem e da castidade. Hipólito é devoto de Ártemis, quer-se casto e em ligação com a natureza. Há nele algo de misógino e de repulsa em relação às mulheres. São estes dois poderes, os que não vemos e se ocultam numa subjetiva cosmicidade, que irão determinar o destino de Fedra e Hipólito, os seus trágicos fins.

Teresa Gafeira, actriz fundadora da CTA, é mais uma vez Fedra, aqui num registo diferente da Fedra de Racine que interpretou em 2006, também com encenação de Rogério de Carvalho; Hipólito é interpretado por Cláudio da Silva, o actor que vimos, neste mesmo Teatro, interpretar brilhantemente o longo monólogo Se isto é um homem, de Primo Levi. Os dois actores dão-nos a dimensão do trágico na expressividade, na voz, num trágico contido em Gafeira, intenso e emotivo em Cláudio quando colocado perante a injustiça de Teseu, que o expulsa por um acto que não praticou. Elsa Valentim, na Ama, tem uma sóbria mas eficaz prestação, Marques d’ Arede faz um Teseu amargo e perdido nos seus labirintos e Miguel Eloy constrói um Mensageiro exemplar, vibrante, a um tempo dolorido e cáustico. Carolina Dominguez (Coro), Pedro Fiuza (Servo), Joana Francampos (Ártemis) e Sofia Correia (Afrodite) integram com perfeição a atmosfera densa que Rogério de Carvalho impôs a mais esta sua brilhante incursão pelos textos do grande teatro do mundo.

A cenografia de José Manuel Castanheira, ampliando o espaço da acção, mas impondo-lhe o clima opressivo do trágico, é de uma absorvente beleza e simbologia.

Afinal o grande teatro ainda faz sentido no nosso tempo. Ainda pode contribuir, como ao longo de séculos, para explicar o homem, para tentar desvendar o oculto que nos habita, para trazer um pouco de luz às nossas vidas. E ajudar-nos a vencer o destino que nos tentam impor.




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