Requiem para o Cinema?

Marta Pinho Alves

O de­sa­pa­re­ci­mento do ci­nema é pre­visto desde a época dos ir­mãos Lu­miére

As trans­for­ma­ções ocor­ridas no ter­ri­tório do ci­nema por via da sua di­gi­ta­li­zação têm ori­gi­nado uma vasta re­flexão que está longe de ser en­cer­rada. No mo­mento em que as ima­gens ti­pi­ca­mente ci­ne­ma­to­grá­ficas, e as suas formas de pro­dução, di­fusão e re­cepção con­ven­ci­o­nais, co­e­xistem com (pelo menos, na me­mória de muitos) ou são subs­ti­tuídas pelas di­gi­tais, re­toma-se a clás­sica questão «o que é o ci­nema?». Este re­gresso à per­gunta ce­le­bri­zada pelo tí­tulo da co­lec­tânea de textos de André Bazin (e que es­teve re­cor­ren­te­mente pre­sente na te­o­ri­zação sobre o ci­nema) tem agora como pro­pó­sito ava­liar se é ainda de ci­nema que fa­lamos quando se alude às novas ima­gens em mo­vi­mento. Assim sendo, ou­tras per­guntas de­correm da pri­meira: es­tará o ci­nema pe­rante o seu mo­mento der­ra­deiro? Ou este per­ma­nece apesar das trans­for­ma­ções de que é alvo no tempo do di­gital?

É co­nhe­cida a de­cla­ração atri­buída a An­toine Lumière, pai dos au­tores do ci­ne­ma­tó­grafo e pro­dutor dos seus es­pe­tá­culos, ale­ga­da­mente pro­fe­rida na gé­nese da então nova tec­no­logia: «O ci­nema é uma in­venção sem fu­turo». Esta des­crença na con­ti­nui­dade do ci­nema, aqui tão pre­co­ce­mente as­si­na­lada, tem sido re­cor­rente ao longo da his­tória desta forma de ex­pressão, jus­ti­fi­cada, pri­mor­di­al­mente, pelas suas vá­rias etapas de re­con­versão tec­no­ló­gica, ob­ser­vadas como ori­gi­na­doras de mu­danças de­ter­mi­nantes na sua or­ga­ni­zação, ad­mi­nis­tração e es­té­tica e, como tal, sus­cep­tí­veis de causar rup­turas com os mo­delos an­te­ce­dentes. A tran­sição do ci­nema mudo para o so­noro foi iden­ti­fi­cada como uma destas pri­meiras grandes re­es­tru­tu­ra­ções. A este pro­pó­sito Fre­dric Ja­meson afirmou que mudo e so­noro cons­ti­tuíram «(...) duas es­pé­cies ou su­bes­pé­cies evo­lu­ci­o­ná­rias dis­tintas», cada uma dessas com uma his­tória au­tó­noma. Uma outra grande e du­ra­doura crise do ci­nema pa­rece ter sido a sus­ci­tada pela mas­si­fi­cação da te­le­visão, logo nos anos 1950, e pelo pos­te­rior de­sen­vol­vi­mento e ex­pansão do vídeo ana­ló­gico, nos anos 1980. O sur­gi­mento das ima­gens elec­tró­nicas e a sua in­tro­dução no campo do ci­nema quer no re­gisto pro­fis­si­onal, quer amador, ori­ginou um forte ques­ti­o­na­mento acerca da sua con­ti­nui­dade. Pela pri­meira vez na his­tória do ci­nema, a trans­for­mação foi mo­ti­vada não por al­te­ra­ções in­ternas, mas por ele­mentos ex­te­ri­ores que pa­re­ceram de­clarar a sua ob­so­les­cência.

Foi par­ti­lhando desta pers­pec­tiva que, no Fes­tival de Cannes de 1982, Wim Wen­ders lançou o do­cu­men­tário com o sig­ni­fi­ca­tivo tí­tulo Quarto 666 (Chambre 666, 1982). Wen­ders pediu a ci­ne­astas de di­fe­rentes na­ci­o­na­li­dades e de dis­tintas mo­da­li­dades de pro­dução e sen­si­bi­li­dades es­té­ticas para re­flec­tirem sobre o fu­turo do ci­nema: es­taria este em risco de ex­tinção? – era a per­gunta que lhes di­rigia. As en­tre­vistas acon­te­ceram num ce­nário mi­ni­ma­lista, cons­truído num quarto de hotel: uma ca­deira para o en­tre­vis­tado, no pri­meiro plano, e um te­le­visor li­gado, em pano de fundo, que pre­tendia sim­bo­lizar a om­ni­pre­sença dos media elec­tró­nicos que na­quele pe­ríodo apa­ren­tavam ame­açar o ci­nema. O lugar do en­tre­vis­tador foi ocu­pado por uma câ­mara de 16 mm e por um gra­vador de som; as ques­tões ori­en­ta­doras es­tavam es­critas num papel.

A mai­oria dos re­a­li­za­dores en­tre­vis­tados no filme con­si­derou que o ci­nema, assim como a sua es­té­tica, lin­guagem e modos de or­ga­ni­zação es­pe­cí­ficos, es­tavam em vias de se ex­tin­guir em vir­tude da emer­gência do vídeo ana­ló­gico e das pos­si­bi­li­dades de re­gisto, edição e re­cepção que este inau­gu­rava. Esta era, aliás, a in­tuição de Wen­ders, ex­pressa no pró­logo do mesmo filme.

Pe­rante as trans­for­ma­ções re­sul­tantes da im­bri­cação do ci­nema com o di­gital, muitos re­tomam a mesma pre­o­cu­pação, de­cla­rando a imi­nência do de­sa­pa­re­ci­mento do ci­nema. Os ar­gu­mentos para este po­si­ci­o­na­mento são ba­se­ados na su­pressão dos ele­mentos que acom­pa­nharam fre­quen­te­mente o ci­nema, pelo menos no quadro da sua ex­pressão pre­do­mi­nante.




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