Velho hábito
Não há muito tempo, registámos aqui a fidelidade da televisão portuguesa em geral e da RTP em especial ao que ao longo de décadas foi o anti-sovietismo, hábito ou talvez vício recomendado pelos bons costumes euroatlânticos. É certo que a União Soviética já não existe (para alívio do chamado Ocidente que sente ter ganho a Guerra Fria) e que a Rússia dará claros sinais de enfim se ter rendido às delícias do capitalismo, mas ainda assim é frequente detectar em várias circunstâncias como que a sombra de um antigo receio afinal sobrevivente. É que, um pouco como que à semelhança do vírus transmissor da maleita que anda por aí a intimidar-nos, o socialismo e a ideia de justiça social que lhe está associada circulam e são como que tentações permanentes para quantos, politizados ou não, estão cansados da brutalização dos fracos pelos fortes que em última análise está no próprio âmago do capitalismo. Ou dizendo o mesmo de outro ângulo: é que uma permanente injustiça social gera uma má-consciência permanente e um permanente receio em quem com ela beneficia.
Penúrias
É neste quadro que se incrustam as notícias de alguma tensão política e diplomática entre a Rússia e a Ucrânia, situação que tem raízes antigas e, como facilmente recordamos, «fez escala» na Crimeia há relativamente pouco tempo. A avaliar pelas informações que aqui chegam e parecem poisar na RTP e não só, essa tensão poderia (poderá?) resultar num conflito armado que, mesmo limitado e enormemente desequilibrado, daria imenso gosto ao Ocidente. Entende-se: afastada a possibilidade de o poder soviético ser afastado por uma convulsão interna na Rússia, pois esse antigo sonho perdeu virulência e tornou-se inverosímil, resta ainda que debilmente a fantasia de um conflito entre a Rússia e a Ucrânia com internas consequências russas, e a TV vem dando sinais dessa minúscula esperança. Não espanta que seja assim: em qualquer circunstância, vive-se do que se tem, pouco que seja. Acontece, porém, que um tal sonho é dramaticamente débil: não tem pernas para andar, como é de uso dizer-se, nem sequer cabeça para pensar. É possível, mesmo provável, que na televisão portuguesa e/ou fora dela subsista o que talvez possa designar-se por «espírito viriato» em memória dos «viriatos» que o fascismo português enviou para a Frente Russa durante a Segunda Grande Guerra, mas acontece que os tempos são muito outros. Assim, sonhar que os ucranianos poderiam substituir-se aos «viriatos» e combater os russos é perder tempo e investir mal o sonho. Que esse sonho surja algures na comunicação social parece significar que o anti-sovietismo agora anti-russo está em penúria de esperanças. E de munições.