O rigor da pintura

Manuel Augusto Araújo

Jorge Pi­nheiro ocupa um lugar raro na his­tória da Arte

Nos al­vores dos anos 60, quatro jo­vens es­tu­dantes de pin­tura e es­cul­tura da Es­cola Su­pe­rior de Belas-Artes do Porto ter­minam os cursos com a nota de 20 va­lores. Fundam os Quatro Vintes, uma alusão iró­nica a uma marca de ta­baco muito co­nhe­cida na al­tura, os Três Vintes. Eram Jorge Pi­nheiro, Ângelo de Sousa, Ar­mando Alves, José Ro­dri­gues. Fi­zeram al­gumas ex­po­si­ções em que pro­cu­ravam so­bre­tudo afirmar-se, numa época em que a vi­si­bi­li­dade das artes era re­du­zida. Ex­plo­ravam os ca­mi­nhos pró­prios que iriam marcar os seus per­cursos pes­soais em que de todos o mais sin­gular é o de Jorge Pi­nheiro, o que ex­plica a efe­me­ri­dade do grupo que só ad­quire re­le­vância en­quanto grupo junto de al­guma his­tória e crí­tica de arte da época.

O seu tra­balho ar­tís­tico de­corre entre a abs­tracção e a fi­gu­ração, tendo-se afir­mado de­fi­ni­ti­va­mente fi­gu­ra­tivo nas úl­timas dé­cadas. Há, no en­tanto, um traço comum em todas as suas obras que é o ex­tremo rigor do jogo vi­sual ini­ci­al­mente apli­cado no pe­ríodo abs­trac­ci­o­nista pelo re­curso à cé­lebre série ma­te­má­tica Fi­bo­nacci que tanto é evi­dente em muitas das suas pin­turas e de­rivas es­cul­tó­ricas, como quando não é ime­di­a­ta­mente iden­ti­fi­cável acaba por ad­quirir vi­si­bi­li­dade nos pa­drões, nas gre­lhas em que as formas se de­sen­volvem e que acabam também por ser a base das suas com­po­si­ções fi­gu­ra­tivas.

Há em toda a obra de Jorge Pi­nheiro uma in­tensa re­flexão não só sobre o que é a pin­tura, a sua me­to­do­logia dis­cur­siva, o seu tra­balho en­quanto mestre-es­cola em que «en­si­nava a téc­nica e não im­punha a minha visão do mundo» o que acaba por ser no­tável num ar­tista em que a re­flexão sobre o Mundo e a Hu­ma­ni­dade são a do­mi­nante da sua obra ali­cer­çada numa re­flexão fi­lo­só­fica, his­tó­rica e ma­te­má­tica, a ma­te­má­tica que nos en­sina a pensar, que o pre­o­cupam, bem vi­sí­veis nas cons­tantes re­fe­rên­cias, li­te­rá­rias, mu­si­cais, pic­tó­ricas que faz, refaz e desfaz nas in­qui­e­ta­ções que o as­saltam e fazem a sua pin­tura di­fe­ren­ciar-se numa arte maior que é um per­ma­nente ques­ti­o­na­mento da exis­tência.

Na dé­cada de 90, na Casa da Cerca, expõe a tela Porquê?. Um quadro que é acom­pa­nhado por 53 es­tudos pre­pa­ra­tó­rios: 12 da com­po­sição, 7 de ca­beças, 11 de mãos, 21 de homem e mu­lher, 2 de pe­des­tais. Di­ante do quadro co­loca uma ca­deira a con­vidar o ob­ser­vador à con­tem­plação. Na pa­rede junto ao quadro uma es­tante de mú­sica em que a par­ti­tura é subs­ti­tuída por um texto «porque a pin­tura é uma arte au­tó­noma, que vive apenas da con­tem­plação re­fle­xiva, as pa­la­vras são inú­teis. Por favor queira sentar-se». É fór­mula que vai re­petir nas suas ex­po­si­ções se­quentes – uma crí­tica ex­plí­cita num pe­ríodo em que a mais das vezes os textos cu­ra­to­riais sobre-in­te­li­gentes se so­bre­põem às obras sub-in­di­gentes – em que ex­põem com as telas fi­nais inú­meros de­se­nhos mos­trando todo o pro­cesso de pro­dução que o pintor in­ten­ci­o­nal­mente re­vela e va­lo­riza, le­gi­ti­mando o lado pro­ces­sual do ob­jecto plás­tico e todo um pro­cesso re­fle­xivo em que se an­cora sempre com uma base fi­lo­só­fica, po­lí­tica e so­cial que tanto se des­cobre na me­ta­fí­sica do já re­fe­rido Porquê?, ou no Sono de Eros ou Solus Ipse como num neo-re­a­lismo re­cu­pe­rado e re­des­co­berto em O guarda, o pão e o cam­ponês ou Ao Povo Alen­te­jano, feitos na sequência do as­sas­sínio de José Ca­ra­vela e An­tónio Cas­quinha, pela GNR em 1979.

Jorge Pi­nheiro pode levar dias, se­manas, meses, anos a cons­truir um quadro, um pro­cesso exaus­tivo que se cumpre entre o es­ti­rador e o ca­va­lete em que pensa e tra­balha para que a obra aca­bada, abs­tracta ou fi­gu­ra­tiva, seja sig­ni­fi­cante o que, num tempo em que se corre atrás dos fins atro­pe­lando os prin­cí­pios, o situa num lugar raro na his­tória da arte.




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