As várias fraudes da Tarifa Social da Internet

Manuel Gouveia

As su­ces­sivas fraudes no «mer­cado» das te­le­co­mu­ni­ca­ções só be­ne­fi­ciam os ope­ra­dores pri­vados

Quer a ANACOM quer a DECO acusam o Go­verno de, ao re­gu­la­mentar a Ta­rifa So­cial de In­ternet, a ter de­frau­dado. Como de cos­tume, o Go­verno cedeu aos in­te­resses dos ope­ra­dores (todos pri­vados) e re­duziu (face à pro­posta da ANACOM) para me­tade o vo­lume mensal de dados na Ta­rifa (para 15 Gi­gabytes) e a ve­lo­ci­dade de down­load quase para um terço (para 12 Mbps). Man­tendo os 6,17 euros por mês de pa­ga­mento. E sem qual­quer li­mite aos ser­viços co­brados se ul­tra­pas­sados esses va­lores.

O anúncio de que «um mi­lhão de por­tu­gueses terão acesso à In­ternet por cinco euros» é de facto uma fraude, pois um ser­viço com estas ca­rac­te­rís­ticas aca­bará por ser muito pouco uti­li­zado. E há exem­plos disso mesmo, re­cor­demos: a PPP do pom­poso Ser­viço Uni­versal de Co­mu­ni­ca­ções Ele­tró­nicas (fixas), que ofe­recia uma ve­lo­ci­dade de trans­missão de dados li­mi­tada a 48 Kbs e nunca ul­tra­passou os dois utentes; ou a TDT, com uma oferta li­mi­tada a um ser­viço in­su­fi­ci­ente para não fazer qual­quer con­cor­rência aos ser­viços pri­vados de venda de te­le­visão.

Fraude sobre fraude

Mas esta fraude na con­cre­ti­zação da Ta­rifa So­cial da In­ternet não pode es­conder outra fraude: a pró­pria Ta­rifa So­cial da In­ternet. Desde logo porque são uma fraude estes me­ca­nismos que re­tiram o ca­rácter uni­versal às me­didas pú­blicas (que é uma an­tiga rei­vin­di­cação da di­reita re­cen­te­mente un­gida por uma al­guma es­querda de­ses­pe­rada por en­con­trar me­didas po­si­tivas que o Go­verno PS acei­tasse im­ple­mentar).

Veja-se o caso da elec­tri­ci­dade para se per­ceber a di­fe­rença. Existe uma ta­rifa re­gu­lada, que é de acesso uni­versal. Esta acaba por ter um efeito po­si­tivo sobre o preço de toda a oferta pri­vada, que está (na prá­tica) im­pe­dida de subir acima dessa ta­rifa por ra­zões con­cor­ren­ciais. Uma ta­rifa so­cial nunca po­derá ter esse papel.

Nas te­le­co­mu­ni­ca­ções, onde os por­tu­gueses pagam das ta­rifas mais caras da União Eu­ro­peia e do mundo, o que de­veria existir era uma oferta uni­versal de acesso à In­ternet (e às te­le­co­mu­ni­ca­ções em geral) de qua­li­dade, gra­tuita ou com um preço acei­tável. Uma oferta que até po­deria ter sido ga­ran­tida através da im­po­sição dessa ta­rifa re­gu­lada nas con­di­ções do pro­cesso de li­be­ra­li­zação (como acon­teceu com a elec­tri­ci­dade).

Mas isto leva-nos à ter­ceira e maior fraude por de­trás de todos estes pro­cessos: o Es­tado ne­ces­sita de li­be­ra­lizar estes sec­tores e de­pois «com­pensar» as suas fa­lhas?

E a res­posta é não. Veja-se o que está a acon­tecer com o 5G. O Es­tado fez um leilão e os pri­vados pa­garam 567 mi­lhões de euros pelo di­reito a ex­plorar de­ter­mi­nadas frequên­cias. Os pri­vados agora ven­derão ser­viços que lhes per­mi­tirão pagar esses 567 mi­lhões, os in­ves­ti­mentos a re­a­lizar (a parte que não é feita com fundos pú­blicos) e ainda os mi­lhares de mi­lhões de euros que querem dis­tri­buir em di­vi­dendos. E ca­ri­dosas ini­ci­a­tivas po­lí­ticas ten­tarão de­pois cor­rigir os de­feitos do sis­tema, com re­gu­la­ções, ta­rifas so­ciais para a pro­cura não sol­vente e me­didas de apoio para não ex­cluir as zonas onde o in­ves­ti­mento não ga­rante o re­torno de­se­jado.

Ora tudo isto é uma fraude. Tudo tem como único ob­jec­tivo ga­rantir a ex­tração es­tável dos mi­lhares de mi­lhões de euros de di­vi­dendos.

A al­ter­na­tiva existe

A al­ter­na­tiva existe, como o PCP tem pro­posto. O Es­tado, de­tentor do do­mínio pú­blico do es­paço elec­tro­mag­né­tico, pode montar uma em­presa pú­blica (ou res­gatar a que pri­va­tizou) e cons­truir uma oferta uni­versal e de qua­li­dade nas te­le­co­mu­ni­ca­ções (em par­ceria com em­presas que de facto aportem algo ao sis­tema, como tec­no­logia). E os por­tu­gueses, que hoje pagam um ver­da­deiro im­posto aos pri­vados das te­le­co­mu­ni­ca­ções (su­pe­rior a 1000 euros por ano na maior parte das fa­mí­lias), te­riam co­mu­ni­ca­ções mais ba­ratas e mais uni­ver­sais. Mas claro, não ge­ra­riam di­vi­dendos para os ca­pi­ta­listas do sector.




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