A arte, a transformação e os imprescindíveis

Manuel Pires da Rocha

É a realidade o mote de toda a criação artística

Já não resta ninguém que tenha estado no primeiro dia do primeiro traço, do primeiro canto, da primeira representação. Tudo o que temos são heranças e respectivos acrescentos. Mas não há dúvida, pelos testemunhos materiais que nos chegaram, que foi a realidade o mote de toda a criação artística. É vida acontecida o que se conserva nas cavernas de Lascaux e nas margens da Foz do Coa. Como vida há-de ter sido o canto inicial e o teatro original de quem pintou e gravou o que ali se vê, mas que, por ser imaterial, acompanhou a mortalidade daqueles nossos antigos.

Mais sorte tivemos nós, que nascemos num tempo que herdou a escrita que, gravada ou impressa, se acrescentou à fixação das imagens. Também já não anda por cá o primeiro humano que se ocupou de fixar os sons e os gestos na mudez do papel, para que o esquecimento da morte não se sobrepusesse à lembrança do acontecido. Nem se guarda o retrato do inventor dos grafismos, feitos para que as histórias das vidas perdurassem e fossem revividas, pelos dali ao pé e por mais quem quisesse, e soubesse, decifrar tais gatafunhos.

Mal de quem nasce e não tenha quem lhe ponha uma cantiga na lembrança, mais tarde um lápis nas mãos e uma história na imaginação. Ferramentas, afinal, da compreensão do mundo, as artes fizeram-se instrumentos da transformação da sociedade. Não por si mesmas – antes pelas vontades dos humanos que precisaram da sua criatura para a criação de mundos novos. Por isso é que tal vontade se deu a herdar munida dos cantos, da literatura, da pintura, da representação que deixa perceber aos de agora que a luta destes dias é a continuação das lutas antigas, mesmo antes de Marx ter muito bem dito que «a história da sociedade até aos nossos dias é a história da luta de classes».

A razão é simples: pertence ao povo o primeiro traço, a primeira entoação na interpretação da vida e, necessariamente, na exposição dos desejos da felicidade. Cantam os ceifeiros ao longo do eito, cantavam os cavadores da manta no acerto da enxada. Cantando se implorava aos deuses a ventura de melhores dias, até ao dia em que se pecebeu que o canto de implorar era insuficiente, podendo as vozes juntar-se noutros cantos, como viriam a ser os de lavrar a História.

Foi ali, às vozes do povo nos caminhos da sua vida, que os artistas iriam buscar o tema das suas obras. Este Beethoven da tanta música não é senão o da Revolução Francesa e quem o esconder quer enganar-nos. Nem são os camponeses da Vinha Vermelha de Van Gogh outros que não a classe trabalhadora, que produz toda a riqueza e, por isso, é protagonista natural dos palcos todos da História (da História da Arte também).

Somos o que aprendemos nas páginas dos Esteiros (também nas ilustrações de Álvaro Cunhal), o que entoamos na Jornada de Lopes-Graça e José Gomes Ferreira, o que recitamos dos versos de Ary, o que que reinventamos das canções do Adriano Correia de Oliveira. Somos o mural do Rogério Ribeiro, ali à Soeiro, a música «difícil» do Jorge Peixinho, o gesto do José Luís Borges Coelho quando nos faz cantar o Acordai, a gravura do José Dias Coelho a contar-nos os caminhos da resistência e da entrega à luta.

A estes nomes – os dos artistas-militantes – outros se juntaram, juntam e juntarão no caminho que há por andar. Mas alguém teria de ser o dos versos de Brecht quando deixou dito, e escrito, «há homens que lutam um dia e são bons, há outros que lutam um ano e são melhores, há os que lutam muitos anos e são muito bons. Mas há os que lutam toda a vida – e são estes os imprescindíveis».

São estes muitos que se comemoram, quando se comemoram 100 anos de tanta vida.




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