Tecnologia, segurança e liberdades
A «eficácia» e o «pragmatismo» não se podem sobrepor a direitos e a liberdades
Vários aspectos da vida concreta dos profissionais das forças e serviços de segurança continuam sem resolução. Nalguns casos, o problema é o incumprimento do que está estatutariamente consagrado. Noutros, trata-se de tomar decisões para lhes pôr fim. Na vasta lista estão, entre muitos outros, os problemas ligados com o desenvolvimento das carreiras, cursos de promoção, passagem à pré-aposentação e colocações, para além, noutro plano, da questão do subsídio de risco e das tabelas remuneratórias.
Ganhou entretanto algum destaque a questão do uso das bodycam (pequenas câmaras que os profissionais usam nos uniformes) e da videovigilância. As estruturas representativas dos respectivos profissionais há muito que reivindicam o uso das primeiras e, sobre as segundas, têm alertado que a tendência para a sua proliferação não deve ter como pressuposto a substituição do factor humano, ou seja, a presença de polícias nas ruas.
Recentemente, o Director Nacional da PSP considerou que se deve «afastar definitivamente fantasmas do big brother», sublinhando que tal uso apenas se refere a espaços públicos e via pública. Realçou ainda que os cidadãos podem filmar tudo, adulterar e colocar essa versão na praça pública e os polícias não. Este raciocínio comum é simpático de ouvir, mas padece de um problema, a saber: um policia não é um cidadão comum, porque está investido de especiais poderes e prerrogativas. O segundo aspecto é que ao cidadão comum que executa tais práticas podem ser pedidas responsabilidades, não existe nenhum espaço em branco.
Quanto aos fantasmas, o que não falta são exemplos internacionais sobre a sua existência, dando sentido à expressão não creio em bruxas, mas lá que há, há. E é por isso que a conformação do uso de tais instrumentos com os valores e princípios constitucionais é fundamental. E é por isso também que esses valores e princípios não devem (ou não deviam) ser olhados como um estorvo, mas como um positivo instrumento de construção de uma vida colectiva com reforçada confiança entre cidadãos e instituições.
Compreende-se a paleta de razões adiantadas para o uso de câmaras nos uniformes. Não é nesse plano que as interrogações se colocam, mas sim relativamente ao resto de todo esse processo. Em artigo publicado no Observador, Nuno Amorim escreve: «Ao contrário destes sistemas (videovigilância), as bodycams registam o mesmo que a visão humana – as lentes têm exatamente o ângulo de visão periférica do olho humano – e apenas serão accionadas nos casos que ficarem tipificados na Lei e de acordo com os protocolos de actuação internos das forças de segurança.»
E o que é que vai ficar tipificado? O que é que vai constar desses protocolos? A seguir refere que «relativamente ao tratamento dos dados pessoais, é fundamental esclarecer que as gravações das bodycams são armazenadas de forma segura num software especificamente desenvolvido para esse fim. As filmagens só podem ser descarregadas para esta plataforma, sendo automaticamente eliminadas no prazo de 30 dias caso não sejam classificadas como prova judicial. Não é, por isso, possível descarregar os dados de uma bodycam para um computador pessoal e usar essas imagens para outros fins que não os previstos. O software permite a rastreabilidade de todas as ações, registando qualquer edição, eliminação de gravação ou mera visualização e identificando, inclusive, quem acedeu e quando. Este registo de acessos não pode ser eliminado por ninguém, podendo ser auditado por entidades externas independentes e devidamente credenciadas, se assim ficar estabelecido».
Que bom seria se tais garantias fossem possíveis de dar, mas a verdade neste domínio é que absolutos não existem. Vários casos internacionais o demonstram. E porque assim é, pedir a alguém que aprove o que quer que seja, para mais em matéria que interfere com direitos, liberdades e garantias, sem simultaneamente ser facultado o conjunto de medidas que irão ser adoptadas, procurando precaver intrusões ou desvios dos fins a que tais instrumentos se destinam, que dispositivos de controlo, etc., é pedir um cheque em branco.
Ora, quem suscita tais aspectos ou alerta para perigos, não está a ver fantasmas, nem está com alucinações ou é Velho do Restelo. Nem está sequer a duvidar das Instituições. Conduzir a abordagem ao assunto para este terreno é pretender desfocar do essencial. O pragmatismo da eficácia e dos resultados não se pode sobrepor a valores e direitos fundamentais, sob pena de se caminhar para direcções que minam e comprometem o regime democrático.