Profecias

Anabela Fino

Quanto mais se fala do Afeganistão mais se agiganta o que continua por dizer, o que deliberadamente se esconde ou omite, numa sucessão sem fim de equívocos e enganos que mais e mais nos afastam da verdade sobre as causas de (mais) uma tragédia que as televisões nos servem em capítulos entre as notícias do acidente, o furacão do dia e as transferências do futebol.

No meio do ruído gerado, perder o essencial é um risco bem real, sobretudo se não há particular interesse dos poderes instituídos em dar-lhe o devido destaque.

Veja-se o caso do jornalista e programador australiano Julian Assange, fundador da Wikileaks, que em 2010 teve a ousadia de divulgar mais de 750 000 documentos confidenciais dos Estados Unidos, entre os quais registos da guerra do Afeganistão e do Iraque, que revelam crimes cometidos pelos soldados norte-americanos. A veracidade dos documentos e o seu interesse público não foram postos em causa, mas Assange tornou-se de imediato no protagonista involuntário da saga «matem o mensageiro».

As hostilidades começaram com Obama, o democrata tão admirado no dito civilizado mundo ocidental, que ordenou a abertura das investigações; prosseguiram com a administração do incómodo Trump, que acusou Assange de «difundir documentos secretos e confidenciais» do Pentágono e do governo; e prossegue com Biden, que foi vice-presidente de Obama e não dá sinais de pretender abandonar o que a Amnistia Internacional classifica de acusações «motivadas politicamente» que colocaram Assange «no banco dos acusados da liberdade de imprensa e da liberdade de expressão».

Por estes dias, com o foco centrado no Afeganistão, não mereceu destaque o facto de o Alto Tribunal de Londres ter concedido um tempo suplementar aos advogados que em nome dos EUA pedem a extradição de Assange, para que possam alargar a fundamentação do pedido. A apresentação de novos argumentos ficou agora marcada para 27 e 28 de Outubro.

À ordem das autoridades britânicas desde Abril de 2019, depois de ter passado mais de sete anos na embaixada do Equador em Londres, onde foi preso após o presidente Lenin Moreno o ter trocado por favores da Casa Branca, o jornalista está debilitado física e psicologicamente, mas continua a ser um alvo a abater. Percebe-se.

Quando o aeroporto de Cabul se tornou no cenário da debandada dos EUA, parecem proféticas as palavras de Assange no Twitter, em 2011, quando disse que o objectivo da guerra do Afeganistão «não era uma guerra bem-sucedida», mas sim «usar o país para lavar dinheiro fora do espaço tributário americano e do espaço tributário europeu através do território afegão e trazê-lo de volta para as mãos das elites de segurança transnacionais». Missão cumprida. Mate-se o profeta.




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