Álvaro Cunhal e a reflexão sobre a arte, o artista e a sociedade
«A arte está indissolúvel e inevitavelmente ligada à vida social»
Numa Festa em que arte, política e povo circulam lado a lado, é importante recordar como a reflexão de Álvaro Cunhal situava a arte no movimento da sociedade. Identificou o essencial: «a arte está indissolúvel e inevitavelmente ligada à vida social», e esta reflecte-se na criação artística, «até independentemente da vontade do artista». Nenhuma arte é neutra nessa relação: a «obra de arte, com propósito ou sem ele, pode acusar ou defender, expressar sentimentos, posições e atitudes, erguer a dúvida ou reforçar a confiança, sugerir o pessimismo do fracasso, do desânimo e da derrota, ou abrir o horizonte com optimismo».
Observando-o, Álvaro Cunhal exprimia um profundo entendimento do que constitui o valor intrínseco da obra de arte, da sua autonomia própria e inigualável, e da sua capacidade de, sendo irrepetível expressão de individualidade, abrir em cada criação um novo horizonte aos humanos todos, de ampliar, enriquecer e gerar novos elos de entendimento humano. Uma profunda consciência da «duração e universalidade do valor estético».
A sua compreensão da autonomia de cada objecto artístico aponta um ponto essencial: o de que essa autonomia – no que diz respeito ao valor social do objecto produzido – é tão ampla que este por vezes entra até em contradição com o próprio pensamento e convicções do seu criador. As convicções políticas conservadoras de Balzac não obstaram a que a sua obra constituísse implacável retrato realista da sociedade do seu tempo. Tal como obras de artistas convictamente empenhados na causa da revolução podem não ajudar essa causa tanto quanto desejariam, por insuficiência ou inadequação dos recursos formais e estéticos adoptados.
Do mesmo modo, (infelizmente, há eficazes exemplos no presente), artistas pessoalmente hostis ao progresso humano conseguem fazer passar com êxito as suas convicções recorrendo a meios e processos de grande criatividade. A cultura e a arte constituem hoje terreno central de intervenção e confronto. De luta de classes.
Compromisso com a vida
A vida de Álvaro Cunhal atravessa um dos mais ricos e intensos períodos da história humana, em que as expressões artísticas partilham o urgente impulso de participar activamente no processo de transformação da sociedade. Mas em que, em simultâneo, persiste no movimento das artes a vontade de isolar a criação artística face à realidade de um mundo em convulsão, assolado pela devastação da guerra, pela barbárie fascista, pela desumana desigualdade e opressão mais extrema. E também, para alguns artistas, pelo ascenso dos inestéticos «humilhados e ofendidos» da Terra à condição de sujeitos históricos de pleno direito, dispostos a mudar o mundo de cima a baixo, incluindo o mundo das elites culturais e artísticas.
É nesse quadro histórico que Álvaro Cunhal situa a reflexão sobre o lugar da arte. É nele que insere o entendimento de uma arte socialmente comprometida, e nele que argumenta em sua defesa. Quando, em 1954, escreve na prisão sobre o tema (5 notas sobre forma e conteúdo, sob o pseudónimo António Vale) a expressão que utiliza – tal como também o faz Mário Dionísio – é «arte de tendência». No seu livro A Arte, o Artista e a Sociedade (1996) o termo que utiliza é «arte de intervenção». E essa diferença assenta num consistente aprofundamento de pensamento: o compromisso social da arte nunca poderia resultar da adopção de «tal ou tal escola ou opção estética», mas do «genuíno empenho criador do artista. Arte é liberdade».
É sobre esse amplo entendimento que Álvaro Cunhal situa a arte comprometida que, sendo do nosso tempo, se insere numa linhagem secular. A arte que, como a de Brueghel, «pinta o povo como se fosse um deles». A arte de Guernica,«milagrosa junção de uma linguagem revolucionária com a indignação e a condenação de um crime monstruoso». A arte em que, como na 5.ª sinfonia de Beethoven, «a mensagem de liberdade é elemento integrante do valor estético». A arte que cultiva uma raiz popular e partilha da aspiração dos povos ao progresso, à liberdade, à emancipação humana.