O Fado, a Festa, o auditório e o Ruben

Manuel Pires da Rocha

O Fado soube continuar a ser música popular

Todas as músicas, ano após ano, marcam presença na Festa. E ali se encontram com o teatro, o cinema, as artes visuais – nos palcos e fora deles. Na Festa do Avante! um ano dura três dias; e o mundo inteiro acomoda-se num espaço de poucos hectares, simbólicas dimensões de um território fraternal, em que os cinco sentidos se juntam à inteligência para experimentarem as felicidades da existência.

Mesmo nos tempos mais escuros: de quando as «emergências» alarmistas e as oportunistas percepções se fazem convidadas no banquete da proibição das vidas. Naqueles dias de Setembro de 2020, ainda o «desconfinamento» estava por inventar e já a Festa do Avante! revelava soluções de salvaguarda das saúdes dos humanos. Lá dentro, pela primeira vez desde há muito, os músicos – para quem a Festa é trabalho – usavam o microfone para declarações políticas em defesa da Cultura e dos seus trabalhadores, denunciando um tempo de ser a Cultura um mero apêndice da governação.

Na Festa do Avante! agora estendida pela Quinta do Cabo da Marinha, o ano da COVID-19 obrigou o Auditório a desfazer-se da tenda branca habitual e a semear-se de cadeiras até lá longe. Ocupadas as cadeiras todas, o povo dispunha-se ainda pela encosta que ladeava a plateia quando a fadista Aldina Duarte deu voz ao primeiro Fado da noite. Mesmo que o rumor da Festa insistisse em ocupar o espaço que era do silêncio (o tal «silêncio, que se vai cantar o Fado»), o Fado tomou o seu lugar habitual de canto popular no meio do povo.

É assim desde a primeira Festa, em 1976, quando era particularmente acesa a discussão sobre se o Fado seria bandeira reaccionária ou manifesto revolucionário, traço marialva ou grito libertário, assunto de colectividade de recreio ou gorgeio de salão nobre. Debate antigo e pelos vistos fecundo, sabendo-se que as canções são barro maleável. Bizarro seria, de resto, que o Fado não se achasse personagem no intrincado jogo de destinos – de fados – que se movem na luta de classes.

O lugar do Fado

Ruben de Carvalho segue-lhe o rasto no livro As Músicas do Fado (Campo das Letras, 1994), descobrindo-lhe rotas e sortes, cruzamentos e companhias, passados de lundum e fandango, rodas de dançar e pecados de bordel, largadas de toiros e convés de navio. Ora, produto da História que lhe coube ser, não nasceu assim, já voz-guitarra-e-viola, tal como hoje o vamos vendo. Barcos à deriva que são as artes dos humanos, o Fado foi-se temperando de muitos modos de ser música e ser verso, misturando-se nos cantares dos tantos que «desceram» do campo à capital em busca de trabalho ao longo do século XIX.

E seguiu o seu hábito de mudar de mãos, de assunto, de ambiente – num dia lamento dos pobres, no outro aristocrático luxo, noutro ainda panfleto subversivo. Conheceu os palcos da revista, os sulcos dos discos, a condição de noticiário nos folhetos de mendigo. Repartiu melodias com pianos, acordeões, violinos mas, de há alguns bons anos para cá, o Fado quis ver-se entre a viola e a guitarra, acompanhantes habituais da aventura fadista. Às vezes. Porque outras vezes resolve variar, como naquele dia em que Aldina cantou com a habitual companhia e Camané cantaria (logo a seguir) em diálogo com o piano de Mário Laginha.

Ontem, 21 de Julho, o Auditório do Museu do Fado, em Lisboa, recebeu o nome de Ruben de Carvalho, o jornalista do Avante! que deixou escrito ser o Fado «um género que está vivo e cuja transformação em género musical lhe deu condições de resistência às modificações sociais que estiveram na sua origem. À semelhança do que aconteceu com outros géneros como o jazz ou o tango, ao criar os seus patterns musicais, o Fado soube continuar a ser música popular». O lugar do Fado é (também) a Festa do Avante!.



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