Um País de mar imenso não se condena à «terra queimada»
«É preciso deixar de falar tanto no mar e começar a aproveitar esse recurso fundamental», afirmou Jerónimo de Sousa no encerramento da mesa-redonda «Produção nacional de embarcações e navios - O desenvolvimento do aparelho produtivo e do sector marítimo-portuário», na qual se identificaram os défices e os seus responsáveis e apresentaram soluções e objectivos para o sector.
O Governo investe na construção soberana de navios ou submete-se à UE?
A iniciativa, dia 6, no Centro de Trabalho Vitória, em Lisboa, foi promovida no âmbito do roteiro que o PCP tem vindo a cumprir ao longo deste ano sob o lema «Pôr Portugal a produzir». De resto, coube a Vasco Cardoso abrir os trabalhos sublinhando, desde logo, que «para o PCP, a defesa produção nacional não é uma moda recente, nem tão pouco um novo critério para aceder à disponibilização de fundos comunitários». Constitui «um eixo central da política alternativa patriótica e de esquerda que propõe ao povo português e pela qual continuará a lutar», centrando-se «na necessidade de substituição de produtos importados por produção nacional, designadamente em áreas muito sensíveis para a vida económica do País», de que são exemplos os «equipamentos de transporte, alimentos, medicamentos ou mesmo no campo da energia».
O membro da Comissão Política do PCP defendeu, por isso, «um forte investimento e uma mudança de políticas no sector marítimo-portuário», desafio que «não poderia ser mais oportuno» na medida em que a realidade recente demonstrou que «o País não pode continuar dependente de bens e equipamentos estratégicos que são produzidos a milhares de quilómetros de distância, sujeito apenas às regras dos ditos mercados e, por isso mesmo, vulnerável perante crises, alterações bruscas no plano internacional, especulação de preços».
Vasco Cardoso não ignorou a discussão que ocorre «em torno dos fundos comunitários», o facto de Portugal depender deles «para todo o tipo de investimento», nem tão pouco «as diversas imposições e condicionalismos da União Europeia, que procuram manter as cadeias de dependência externa com as quais é preciso romper». Contudo, lembrou que os fundos, «não compensando os impactos do mercado único e do Euro, precisam de ser utilizados na modernização e desenvolvimento do País».
No caso concreto do sector marítimo-portuário, «para renovar e modernizar a sua frota de pesca e exercer a sua soberania sobre uma imensa zona económica exclusiva; alargar a sua capacidade de investigação científica e a preservação e gestão dos recursos naturais; assegurar as inúmeras tarefas que se colocam à defesa nacional neste vasto território», bem como «o transporte de passageiros por via fluvial e marítima e a ligação às regiões autónomas (e entre ilhas também); para garantir «o transporte de mercadorias, designadamente as produzidas em território nacional, projectar os portos nacionais para este século XXI» e «potenciar a actividade marítimo-turística com embarcações que não sejam apenas importadas».
Potencialidades amarradas
Ora, a situação em que nos encontramos e se atesta pelo facto de a indústria naval representar somente 0,92 por cento do PIB num País com tamanha vocação marítima, «é uma consequência directa das políticas de liberalização da União Europeia e da submissão dos Governos portugueses a esses interesses», acusou Vasco Cardoso. Lembrou, depois, que aquela «tem potencialidades para ser um dos sectores estratégicos do aparelho produtivo nacional», subsistindo «grandes estaleiros» nos portos de «Viana, Aveiro, Figueira da Foz, Peniche, Lisboa e Setúbal» e um «significativo conjunto de pequenas e médias empresas».
Assim, «para o PCP o Estado tem a obrigação de olhar para toda a fileira produtiva naval e de programar a sua defesa e desenvolvimento, nomeadamente partindo das necessidades nacionais de embarcações e navios (quer de novos, quer da manutenção/modernização da actual frota), dos fundos públicos disponibilizados e promovendo a estreita cooperação entre o Estado, o Sector Público Empresarial, as universidades, o aparelho científico nacional e, também o sector privado, designadamente as MPME ligadas ao sector».
«A liberalização da actividade económica no sector marítimo-portuário, impulsionado pela UE e pelas multinacionais, tem empurrado o Estado para o papel de espectador da actividade económica», limitação «da intervenção pública que tem tido consequências desastrosas».
«É por isso que dizemos é tempo de reindustrializar Portugal, assumir as potencialidades da nossa vertente marítima e tomar a iniciativa a partir do investimento e planeamento público, por forma a aproveitar, de forma integrada, as potencialidades no mar e em terra», concluiu o dirigente comunista.
Identificados os problemas
Já depois de um período em que sete camaradas abordaram a situação e propostas específicas para diversas actividades que estão a montante e a jusante da produção nacional de embarcações e navios (ver caixa), como referiu Jerónimo de Sousa, coube precisamente ao Secretário-geral do PCP encerrar a mesa redonda frisando vários aspectos que exigidos para a sua reconstrução.
Primeiro, notou, «é preciso acabar é com a subsidiação financeira dos grupos económicos pelo Estado», pelo que, insistiu, «a abordagem sobre os grandes investimentos do nosso País tem que começar pela identificação das necessidades, défices e potencialidades nacionais».
«Desde logo, é preciso interiorizar que não é a mesma coisa ir às compras ao estrangeiro ou organizar a produção em Portugal dos bens e mercadorias de que necessitamos», prosseguiu, e lembrando o exemplo da aquisição de barcos para a travessia do Tejo, trazido antes a debate, sintetizou que, nos moldes previstos, «o investimento é público, feito por uma empresa pública mas estaria a viabilizar uma empresa privada».
Por outro lado, assinalou ainda Jerónimo de Sousa, importa não esquecer que «temos a maior zona económica exclusiva na UE; possuímos mais de mil quilómetros de costa atlântica; temos dois arquipélagos que constituem outras tantas Regiões Autónomas; temos portos com condições naturais excepcionais, das águas profundas de Sines ao extraordinário estuário do Tejo; somos o terceiro maior consumidor mundial (per capita) de pescado». Não obstante, «o nosso défice comercial nas pescas é superior a mil milhões de euros», a «nossa frota de pesca tem uma média etária de 33 anos» e «as quotas de produção estão subdimensionadas nuns casos – como a sardinha e o espadarte – e não são plenamente utilizadas noutros casos – como o carapau e a cavala».
Acresce que «os nossos navios de investigação científica, que são fundamentais para avaliar stocks e monitorizar a evolução e o equilíbrio de recursos marinhos e para alargar o conhecimento e a capacidade produtiva, passaram os últimos dez anos essencialmente encostados, ora por falta de tripulação, ora por falta de orçamento, ora por falta de investigadores, enquanto as políticas submetidas ao défice e aos critérios da troika nos faziam poupar uns milhares para depois perder uns milhões de euros».
Impõe-se soluções
Ou seja, salientou o dirigente comunista, «é preciso deixar de falar tanto no Mar e começar a aproveitar esse recurso fundamental. Começando por organizar e planificar a exploração dos nossos recursos piscícolas» e promover a «modernização da frota de pesca», trabalho que «deve ser feito no essencial num conjunto de empresas e estaleiros nacionais».
Da mesma forma», continuou Jerónimo de Sousa, «o navio de investigação científica que precisamos de construir não pode ter como única condicionante que o seu motor funcione a amónia dita verde, como consta no chamado Plano de Recuperação e Resiliência. Para o PCP a primeira condicionante é que o navio tem que ser projectado e construído em Portugal, e tem que ter, desde o início, uma tripulação e uma equipa de técnicos e cientistas capazes de o rentabilizarem ao serviço do País».
Necessidades conhecidas e identificadas nos trabalho, são, ainda, as de «um rebocador de alto mar, de construir dragas capazes de dotar uma reconstruida empresa nacional de dragagens, de construir navios para as operações entre as nossas ilhas atlânticas, destas com o Continente e entre os vários portos nacionais, de nos equiparmos com barcaças para a cabotagem fluvial, de substituir os navios fretados que nos nossos portos asseguram as operações de abastecimento». E mesmo considerando que «o atraso é grande» e que, no caso da situação do Arsenal do Alfeite, «é o Estado português, e em concreto os seus sucessivos governos, que têm tratado de liquidar a capacidade da nossa Marinha de Guerra de proceder à reparação da sua própria frota», o Secretário-geral do PCP lançou um desafio:
«Está o Governo disponível em apostar na reconstrução do aparelho produtivo nacional de embarcações e navios?»
É que, contas feitas, «falamos de cerca de 100 milhões de euros para a modernização e ampliação dos estaleiros navais nacionais e de cerca de 250 milhões de euros anuais, nos próximos dez anos, em apoios públicos à construção e modernização de navios portugueses em Portugal».
«Parece muito dinheiro e é muito dinheiro. Mas mais de metade deste dinheiro está já previsto ser gasto na compra “no mercado” de navios e embarcações e o resto está previsto ser gasto na aquisição de serviços a navios das multinacionais», pelo que, em jeito de conclusão, Jerónimo de Sousa deixou uma pergunta: «Está o Governo disposto a investir na construção das embarcações e navios necessários a Portugal e na reconstrução do aparelho produtivo nacional, ou vai continuar a limitar-se a comprar o que a UE lhe autorize comprar, da forma e a quem esta autorizar?».
«Quem vai ao mar avia-se em terra»
Na sessão, entre as intervenções de abertura e de encerramento, sete camaradas trataram, com detalhe, áreas e questões específicas em causa quando se fala de produção nacional de embarcações e navios e de desenvolvimento do aparelho produtivo e do sector marítimo-portuário.
Aliás, parte dos contributos trazidos por Carlos Costa (sector fluvial de transportes de passageiros e de mercadorias), Sara Lemos (frota pesqueira e dragagens), José Marinhas (Estaleiros Navais de Viana do Castelo), Jerónimo Teixeira (economia do mar e estratégia governamental), António Pereira (Arsenal do Alfeite) e Daniel Mestre (portos nacionais e segurança marítimo-portuária), foram incluídos num documento produzido para a iniciativa.
Os oradores concordaram, ainda, na identificação das causas e responsáveis pela actual situação desastrosa e na necessidade urgente de implementar medidas visando alcançar os objectivos elencados por Vasco Cardoso e Jerónimo de Sousa.
Coube por isso a Bruno Dias dar conta das iniciativas legislativas do PCP nesta matéria. Ou se se quiser dizer de outra forma, para cumprir o conselho popular que afirma que «quem vai ao mar avia-se em terra»,lembrou.
Assim, o membro do Comité Central do PCP e deputado na AR, destacou, entre outros, uma proposta sobre o desenvolvimento da indústria naval, o investimento público e as necessidades nacionais, contemplando a disponibilização de verbas «para a revitalização e dinamização dos principais estaleiros nacionais» e a «conversão desses apoios em capital social».
Na mira comunista estão, ainda, a defesa e reabilitação do Arsenal do Alfeite, com a sua integração na Marinha e os investimentos infra-estruturais para que cumpra a sua missão; a valorização do trabalho e dos trabalhadores, acabando com a precariedade reinante como a que se observa nos estaleiros da Lisnave na Mitrena; a revitalização da marinha mercante nacional com a valorização do registo nacional de navios, atribuindo-lhe a progressiva exclusividade de operações marítimo-portuárias e exigindo a integração de 90 por cento de marítimos portugueses, e o fim da bandeira de conveniência.
Terão igualmente tradução em iniciativas legislativas do Partido, os propósitos de apoiar o reforço das frotas nacionais de passageiros e cargas entre o continente e as ilhas, das operações fluviais por barcaça, nomeadamente no Porto de Lisboa, e de desenvolvimento de operações de cabotagem; de assegurar operações portuárias de abastecimento nacional e um serviço nacional de dragagens.
Por fim, o PCP pretende garantir um serviço público de coordenação de reboque de pilotagem e de inspecção de navios, assegurado directamente pelos portos do País com meios humanos e técnicos suficientes, o levantamento das necessidades ao nível da esquadra de navios da autoridade marítima nacional, e o fortalecimento das capacidades soberanas em matéria de investigação cientifica.