Plataformas digitais: mais um instrumento de exploração dos trabalhadores

Helena Silva

O tra­balho em pla­ta­forma di­gital é o re­gresso à praça de jorna

Os avanços tec­no­ló­gicos nas úl­timas dé­cadas têm im­pactos sig­ni­fi­ca­tivos na or­ga­ni­zação do tra­balho e na so­ci­e­dade. Po­de­riam cons­ti­tuir um forte im­pulso à me­lhoria das con­di­ções de vida, mas antes têm ser­vido de pre­texto para impor a ex­plo­ração da força do tra­balho e o em­po­bre­ci­mento geral e para cor­po­rizar novas e mais pe­ri­gosas ofen­sivas e ex­tor­sões, tudo em nome da com­pe­ti­ti­vi­dade, da con­cor­rência, da glo­ba­li­zação e da in­ter­na­ci­o­na­li­zação. A apro­pri­ação dos ga­nhos do de­sen­vol­vi­mento tec­no­ló­gico pelo ca­pital mo­no­po­lista e mul­ti­na­ci­onal é um pro­blema cen­tral, que con­se­quen­te­mente in­fere sobre os di­reitos (ou falta deles) dos tra­ba­lha­dores. É o caso das pla­ta­formas di­gi­tais.

O Re­la­tório Anual de 2021 sobre as Pers­pec­tivas So­ciais e de Em­prego Mun­diais da OIT re­fere que na úl­tima dé­cada o nú­mero de pla­ta­formas di­gi­tais de tra­balho quin­tu­plicou e que o novo mo­delo de ne­gócio por elas le­vado a cabo per­mite or­ga­nizar o tra­balho através da me­di­ação entre tra­ba­lha­dores que de­sem­pe­nham ta­refas e cli­entes, ge­rindo o pro­cesso com re­curso a al­go­ritmos. Isto tudo sem ne­ces­si­dade de con­tratar tra­ba­lha­dores.

 

Pro­pa­ganda e re­a­li­dade

Fle­xi­bi­li­dade e in­de­pen­dência do tra­ba­lhador é a pro­pa­ganda, um forte in­cen­tivo à des­re­gu­lação do tra­balho e à cri­ação de ilu­sões de uma in­de­pen­dência que não existe para não cum­prirem tudo o que já é pre­visto pela lei, no­me­a­da­mente pelo Có­digo do Tra­balho. En­gordam os seus lu­cros à custa do do­mínio que exercem sobre os tra­ba­lha­dores e da sua pre­ca­ri­zação, sem quais­quer di­reitos ga­ran­tidos – a um vín­culo per­ma­nente, a um sa­lário justo, a um ho­rário de­fi­nido, à pro­tecção so­cial, à in­for­mação, ao des­canso e à ga­rantia das con­di­ções de se­gu­rança e saúde no tra­balho.

Um tra­balho que sig­ni­fica na prá­tica, ao re­gresso às praças de jorna, agora tor­nadas di­gi­tais, em que de­zenas de tra­ba­lha­dores se con­cen­tram junto a cada res­tau­rante e a cada ser­viço à es­pera de que o pe­dido de exe­cução do tra­balho, trans­porte ou en­trega lhes «caia» na apli­cação do te­le­móvel para tra­ba­lharem.

Os al­go­ritmos são uti­li­zados para gerir a ac­ti­vi­dade da pla­ta­forma, através de in­for­mação que lhe é in­se­rida ou re­ti­rada no sen­tido de a op­ti­mizar. Mas a questão cen­tral é a falta de ob­jec­ti­vi­dade e trans­pa­rência dos mesmos. Os tra­ba­lha­dores não co­nhecem os al­go­ritmos e a in­for­mação que lhes está sub­ja­cente nem o modo como são apli­cados. Como não são fis­ca­li­zados, através deles aplicam-se multas, de­ter­minam-se cas­tigos, des­pede-se, criam-se bases de dados e perfis dos tra­ba­lha­dores.

O tra­balho de­sen­vol­vido através de pla­ta­formas di­gi­tais não é uma nova mo­da­li­dade de tra­balho nem um pro­duto do de­sen­vol­vi­mento tec­no­ló­gico. É uma forma tra­di­ci­onal de pres­tação de tra­balho, no qual uma pessoa se obriga, me­di­ante re­tri­buição, a prestar a sua ac­ti­vi­dade a outra ou ou­tras pes­soas, no âm­bito da or­ga­ni­zação e sob a au­to­ri­dade destas. Aliás, esta é a de­fi­nição le­gal­mente pre­vista no Có­digo do Tra­balho.

Assim, o tra­balho em pla­ta­forma di­gital, apre­sen­tado como uma al­te­ração pro­funda do modo de pro­dução e uma «mo­der­ni­zação» das re­la­ções de tra­balho, está em­bru­lhada em con­ceitos que mais não são que formas de tra­balho pre­cário. Apesar de em ou­tros países, já terem sido dados al­guns passos sig­ni­fi­ca­tivos na ga­rantia de di­reitos dos tra­ba­lha­dores, em Por­tugal há muito por fazer.

 

Com­bater a ex­plo­ração

A re­gu­la­men­tação, li­cen­ci­a­mento, re­gisto, local e modo como efec­tuam o pa­ga­mento de im­postos e fis­ca­li­zação das em­presas que operam as pla­ta­formas di­gi­tais, a trans­pa­rência dos al­go­ritmos que uti­lizam e a trans­missão dessa in­for­mação aos tra­ba­lha­dores é ab­so­lu­ta­mente ne­ces­sária, mas está longe de ser con­cre­ti­zada.

Os si­lên­cios e ac­ções pas­sivas são re­ve­la­doras da cum­pli­ci­dade e co­ni­vência do Go­verno e das en­ti­dades fis­ca­li­za­doras para a con­ti­nui­dade e o acen­tuar da pre­ca­ri­e­dade.

E con­tra­ri­a­mente ao que é al­me­jado pelo Livro Verde sobre o Fu­turo do Tra­balho – 2021, o que é ne­ces­sário é não le­gi­timar as prá­ticas ile­gais le­vadas a cabo pelas pla­ta­formas di­gi­tais mas ga­rantir os di­reitos dos tra­ba­lha­dores e a apli­cação do Có­digo do Tra­balho e travar o modus ope­randi destas em­presas, desde logo, obri­gando as mesmas ao cum­pri­mento da le­gis­lação na­ci­onal, ao li­cen­ci­a­mento e re­gisto obri­ga­tório e ao pa­ga­mento de im­postos em ter­ri­tório por­tu­guês, à pres­tação de in­for­mação sobre os al­go­ritmos uti­li­zados e ao cum­pri­mento das re­gras de con­cor­rência.

Porque a pre­ca­ri­e­dade e ex­plo­ração com­batem-se, não se le­gi­timam!




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