Cinema de base de dados
Cineastas e artistas têm explorado as potencialidades generativas do computador
Num texto escrito na viragem do século XX para o XXI, Lev Manovich, téorico dedicado ao estudo dos media digitais, declarou que, em breve, os filmes e telenovelas assemelhar-se-iam «mais ao canal de televisão Bloomberg do que a E Tudo o Vento Levou». Esta ideia era fundada na noção de que a base de dados ocupara já́ o lugar de principal forma de expressão cultural, destronando a narrativa. Segundo o autor, os novos objetos dos media: «não contam estórias; não têm princípio ou fim (...), não têm qualquer desenvolvimento temático, formal ou de outro tipo que lhes permita organizar os seus elementos sequencialmente. Em vez disso, estes são colecções de itens individuais, em que cada um tem o mesmo significado que qualquer outro».
Embora o cinema encontre ainda expressões múltiplas, não estando concretizado o cenário antevisto pelo autor, várias experiências têm sido desenvolvidas que podem ser aqui enquadradas. Cineastas e artistas que trabalham com imagens em movimento têm explorado as potencialidades generativas do computador, testando um cinema construído pela máquina.
Uma proposta de cinema de base de dados foi elaborada por Lev Manovich. Intitulada Soft(ware) Cinema – Navigating the Database, teve a sua origem em 2002 (primeiro como instalação e depois em DVD) e é composta por imagens geradas por software, característica que lhe atribuiu a sua designação. Esta inclui três peças audiovisuais. O funcionamento de Soft(ware) Cinema consiste no armazenamento e organização em bases de dados de segmentos de imagens em movimento e de sons. A montagem das imagens resulta de combinações aleatórias criadas por variáveis determinadas pelo computador. Estas variáveis, que dão indicações ao programa sobre quais as possíveis combinações das imagens e sons, são traduções numéricas de factores formais como, por exemplo, a cor ou contraste dos elementos visuais. A extensão das possibilidades recombinatórias é dependente da quantidade de informação armazenada nas bases de dados. O monitor do computador onde se exibe o softcinema está organizado numa lógica de splitscreen e gráficos que permitem miscigenações e justaposições entre imagens no espaço físico do ecrã̃. Sendo que a interactividade intrínseca ao funcionamento do softcinema, este não oferece uma estrutura linear ou uma narrativa convencional, configurando-se como uma obra inacabada, em permanente reformulação e redireccionamento.
Neste âmbito integra-se também Korsakow Syndrome, de 2000, da autoria de Florian Thalhofer. O título desse trabalho faz referência a um termo médico que designa uma tipologia de dano cerebral causada pelo consumo excessivo de álcool. Para organizar uma série de depoimentos recolhidos para o filme, o autor desenvolveu um software que veio a assumir a designação Korsakow System. O mesmo software continuou a ser utilizado pelo cineasta em trabalhos posteriores e, em 2009, foi disponibilizado como software livre, permitindo que qualquer pessoa possa utilizá-lo, aplicando-o aos seus projetos. Este possibilita criar narrativas baseadas em relações dinâmicas entre pequenos vídeos, em vez de originar caminhos pré-determinados. Para cada filme Korsakow são compostas pequenas unidades narrativas (designadas, no original, smallest narrative units – SNU), que consistem em vídeos curtos, cuja duração ronda entre os vinte segundos e os dois minutos. O resultado é um filme não-linear e interactivo, onde a audiência escolhe a intriga, selecionando-a a partir de vários links. As estórias são fragmentadas e não necessariamente coerentes. A busca faz-se por correspondências, baseadas em regras pré́-definidas de conexões entre as SNU.