A intrusa
Foi, na passada segunda-feira, uma entrevista de Miguel Sousa Tavares ao general Ramalho Eanes. O general não é um entrevistado fácil no sentido de que a sua presença no ecrã não constitui um empolgante espectáculo televisivo, digamos assim, mas o importante num caso destes é o que o entrevistado diga (porventura também o que ele cale) e não o sotaque que porventura conserve das suas origens beiroas. A entrevista decorreu serenamente, como seria de esperar, sem momentos altos nem o seu contrário. Ainda assim, porém, terá havido um instante em que seria compreensível um eventual «frisson»: quando Ramalho Eanes, em comentário directo à actualidade portuguesa, lembrou que «não é admissível que existam portugueses que tenham fome». Assim mesmo, textualmente. O que denuncia a existência de portugueses e da fome. E talvez também que, embora imprecisas ou escassas, também a ele, homem de Abril mas mais ainda homem de Novembro, caberão algumas responsabilidades por essa situação.
Inadmissível, disse ele
Neste tempo de pandemia agressiva, a televisão fala-nos muito do sinistro vírus que por aí continua a passear-se, e compreende-se que o faça; mas nem agora nem em qualquer outra altura ela, a TV, nos fala da fome. E contudo ela existe, como Eanes confirmou e aliás cada um de nós o sabe se o quiser saber. Do vírus que agora se terá encarniçado contra nós sabemos, porque a TV (e não só) no-lo ensinou, que começou a colonizar-nos lá pelo norte e veio depois por aí abaixo; quanto à fome, terá nascido em parte incerta ou mais provavelmente um pouco por toda a parte. Já um pouco por todo o lado ocorre a mobilização nacional contra o famigerado vírus, mas pouquíssimo ou nada se sabe de uma eventual mobilização contra essa intrusa que, sendo embora uma presença secular na sociedade portuguesa, não é convidada, muito antes pelo contrário. Ramalho Eanes sabe que ela anda por aí, e muitos outros o sabem, o que é o mais relevante. Assim, a interrogação que se impõe é óbvia: e não se pode exterminá-la? Precisando um pouco mais a interrogação: não haverá um órgão público especialmente encarregado de a exterminar? Ramalho Eanes deu expressão verbal ao óbvio: «não é admissível» a existência de cidadãos portugueses com fome. E, contudo, eles existem. Quantos? Como? Porquê? Deve haver quem tenha a obrigação de responder a estas perguntas. Pior: haverá quem na prática se renda à existência dessa intrusa. Emerge uma evidência: é necessário e urgente fazer alguma coisa. Porque, como Eanes disse repetindo aliás o que milhares de outros pensam: a fome de cidadãos portugueses é inadmissível.