Cronovelemas e Burgueses somos nós todos ou ainda menos, de Mário de Carvalho
Mário de Carvalho denuncia grandes questões comtemporâneas recorrendo à ironia, ao fantástico, ao humor
Fugindo ao que Alexandre Pinheiro Torres designou por «litania do miserabilismo», que invadiu alguma da literatura dos finais dos anos 1960, em textos em que o conformismo campeava, a escrita de Mário de Carvalho percorre, pelos enxutos territórios da ironia, do fantástico, do humor, do nonsense (mesmo quando um travo de amargura os atravessa) e da inteligência discursivas, com desarmante acuidade, a análise deste país prostrado, mas alcandorando-se na singularidade ressonante da sua voz, muito para além desses estruturantes discursivos. Mário de Carvalho consegue, como Saramago, vencer os «vitorianismos mentais», o ranço flamenco/fadista, a zarzuela dos pobretes/alegretes, que parecia estar, como desígnio pardo, reservado às literaturas ibéricas.
É redutor pensarmos que à literatura cabe apenas (como Graham Green imaginava) o poder de representação de uma determinada realidade, ou que, como os neo-realistas definiam, no exercício da materialização dialéctica da realidade, da denúncia das injustiças, extremando as suas componentes, surgiria a indignação colectiva e, a partir dela, a revolução das mentalidades face aos fenómenos sociais e políticos. Dessa forma, a literatura contribuiria, agente subliminar, para a consciencialização social (e era desta componente que o fascismo tinha medo), face a uma determinada realidade, levando à sua transformação. Mário de Carvalho não acredita neste poder tão intenso que a literatura operará no inconsciente colectivo, mas busca, através de situações aparentemente absurdas, denunciar as grandes questões que invadem os quotidianos das sociedades contemporâneas.
É isso que acontece com dois dos seus mais recentes livros, Cronovelemas e Burgueses somos nós todos ou ainda menos, publicados respectivamente em 2017 e 2018, nos quais o autor escalpeliza, através de um irónico bisturi, os tiques e os comportamentos sociais da burguesia, a partir da ideia esboçada por Mário Cezariny, segundo o qual Burgueses somos nós todos/por nossas mãos./Burgueses somos nós todos/que horror irmãos.
Na primeira novela de Cronovelemas, intitulada A Arte de Morrer Longe (título já usado pelo autor num romance de 2010), descreve-se a desdita de uma tartaruga doméstica que o casal, em vias de separação, não sabe que destino lhe dar. Após várias e infrutíferas tentativas de se verem livres do animal, sempre com intenções basto altruístas, o casal, que graças a essa insólita aventura acaba por considerar que, contra todas as expectativas, afinal ainda se amam o suficiente para continuarem juntos, atiram a tartaruga para a Lagoa Moura, onde uma atenta coruja-das-torres lhe chamou um figo.
Quando o Diabo Reza, a segunda novela de Cronovelemas, traz o retrato pícaro de um grupo de marginais de uma certa Lisboa a braços com um esquema para a extorsão do pecúlio bancário de um velho empresário de loja de ferragens, competindo nesta liça com as filhas do dito cujo que aguardam a hora do passamento do progenitor para porem em ordem as desabonadas finanças e os sonhos de viajar para as praias de Varadero. Hilariante, portanto.
Burgueses somos nós todos ou ainda menos, é um conjunto de onze contos sobre uma burguesia amarga e melancólica, sobre homens e mulheres perdidos nos seus próprios labirintos de classe, nos ciúmes, nas traições, no sentido de culpa, ou vivendo o desespero dos dias repetidos e sem chama, os silêncios, as perplexidades de quotidianos vazios, as perversidades, a sexualidade em crise, o absurdo da existência.
Mário de Carvalho, ao contrário do que acontece em Cronovelemas, utiliza aqui uma ironia mais cáustica, um humor negro que nele é rara forma de estruturar o discurso, mas que neste registo singular funciona na perfeição. O riso que grande parte dos contos provoca no leitor é, concomitantemente, um riso carregado pela incomodidade, pelo sentido amplo daquilo que o autor nos conta – porque, afinal Burgueses somos nós todos/desde pequenos.
Não sei de melhores leituras para estes dias de regresso ao espectro do silêncio.