- Nº 2461 (2021/01/28)

Cronovelemas e Burgueses somos nós todos ou ainda menos, de Mário de Carvalho

Argumentos

Fugindo ao que Alexandre Pinheiro Torres designou por «litania do miserabilismo», que invadiu alguma da literatura dos finais dos anos 1960, em textos em que o conformismo campeava, a escrita de Mário de Carvalho percorre, pelos enxutos territórios da ironia, do fantástico, do humor, do nonsense (mesmo quando um travo de amargura os atravessa) e da inteligência discursivas, com desarmante acuidade, a análise deste país prostrado, mas alcandorando-se na singularidade ressonante da sua voz, muito para além desses estruturantes discursivos. Mário de Carvalho consegue, como Saramago, vencer os «vitorianismos mentais», o ranço flamenco/fadista, a zarzuela dos pobretes/alegretes, que parecia estar, como desígnio pardo, reservado às literaturas ibéricas.

É redutor pensarmos que à literatura cabe apenas (como Graham Green imaginava) o poder de representação de uma determinada realidade, ou que, como os neo-realistas definiam, no exercício da materialização dialéctica da realidade, da denúncia das injustiças, extremando as suas componentes, surgiria a indignação colectiva e, a partir dela, a revolução das mentalidades face aos fenómenos sociais e políticos. Dessa forma, a literatura contribuiria, agente subliminar, para a consciencialização social (e era desta componente que o fascismo tinha medo), face a uma determinada realidade, levando à sua transformação. Mário de Carvalho não acredita neste poder tão intenso que a literatura operará no inconsciente colectivo, mas busca, através de situações aparentemente absurdas, denunciar as grandes questões que invadem os quotidianos das sociedades contemporâneas.

É isso que acontece com dois dos seus mais recentes livros, Cronovelemas e Burgueses somos nós todos ou ainda menos, publicados respectivamente em 2017 e 2018, nos quais o autor escalpeliza, através de um irónico bisturi, os tiques e os comportamentos sociais da burguesia, a partir da ideia esboçada por Mário Cezariny, segundo o qual Burgueses somos nós todos/por nossas mãos./Burgueses somos nós todos/que horror irmãos.

Na primeira novela de Cronovelemas, intitulada A Arte de Morrer Longe (título já usado pelo autor num romance de 2010), descreve-se a desdita de uma tartaruga doméstica que o casal, em vias de separação, não sabe que destino lhe dar. Após várias e infrutíferas tentativas de se verem livres do animal, sempre com intenções basto altruístas, o casal, que graças a essa insólita aventura acaba por considerar que, contra todas as expectativas, afinal ainda se amam o suficiente para continuarem juntos, atiram a tartaruga para a Lagoa Moura, onde uma atenta coruja-das-torres lhe chamou um figo.

Quando o Diabo Reza, a segunda novela de Cronovelemas, traz o retrato pícaro de um grupo de marginais de uma certa Lisboa a braços com um esquema para a extorsão do pecúlio bancário de um velho empresário de loja de ferragens, competindo nesta liça com as filhas do dito cujo que aguardam a hora do passamento do progenitor para porem em ordem as desabonadas finanças e os sonhos de viajar para as praias de Varadero. Hilariante, portanto.

Burgueses somos nós todos ou ainda menos, é um conjunto de onze contos sobre uma burguesia amarga e melancólica, sobre homens e mulheres perdidos nos seus próprios labirintos de classe, nos ciúmes, nas traições, no sentido de culpa, ou vivendo o desespero dos dias repetidos e sem chama, os silêncios, as perplexidades de quotidianos vazios, as perversidades, a sexualidade em crise, o absurdo da existência.

Mário de Carvalho, ao contrário do que acontece em Cronovelemas, utiliza aqui uma ironia mais cáustica, um humor negro que nele é rara forma de estruturar o discurso, mas que neste registo singular funciona na perfeição. O riso que grande parte dos contos provoca no leitor é, concomitantemente, um riso carregado pela incomodidade, pelo sentido amplo daquilo que o autor nos conta – porque, afinal Burgueses somos nós todos/desde pequenos.

Não sei de melhores leituras para estes dias de regresso ao espectro do silêncio.


Domingos Lobo