Tecto, tectos
Foi o inverno de 2019, decorreu um ano, invadiu-nos a pandemia, passou o Outono, voltou o frio. E, como que indiferente à passagem dos meses, a televisão veio agora trazer-nos a casa a mesma notícia: os chamados sem-abrigo, os que não dispõem de paredes que os defendam do frio, da chuva e decerto de outros males mais dificilmente inventariáveis, voltam a ser notícia ou apenas informação. Um dos telenoticiários informa-nos de que numa das cidades portuguesas, apenas nela, serão uns 3500, número obviamente redondo, não nos sendo dito quantos poderão ser em todo o território do continente. O telespectador que repare nestas coisas lembrar-se-á de que há cerca de um ano a RTP transmitiu breve reportagem de uma visita nocturna que o Presidente Marcelo fez a diversos lugares da via pública onde pernoitavam cidadãos. Foi uma iniciativa simpática, mas infelizmente a reportagem não foi complementada então ou mais tarde pela informação de que essa pernoita tenha sido eliminada por desnecessária e inconveniente pelo menos no período do ano em que o frio mais aperta. E somos agora informados de que só numa das belas cidades portuguesas são cerca de 3500 os cidadãos que se defrontam com o frio e à chuva nocturnos apesar de o direito à habitação estar inscrito na Constituição da República. É de supor que ela, a Constituição, mais quem tem o dever de velar pelo seu cumprimento, não saiba deste caso. Ou, mais provavelmente, que, tendo sabido, já o tenha esquecido.
Outros tectos
A informação acerca destes três milhares e meio de cidadãos portugueses que de dia e de noite vivem sem tecto reclama, como é óbvio, muito mais que a referência breve num telenoticiário, e será necessário que nos munamos de alguma dose de optimismo para esperarmos que dela decorram consequências positivas: tomada de consciência por parte dos poderes executivos, medidas robustas e urgentes que a prolonguem e lhe dêem sentido concreto. Mas, por muito que se trate de um direito fundamentalíssimo, e trata, ele não é tudo: podemos utilizar o direito ao tecto não apenas como requisito fundamental mas também como símbolo de outros direitos não menores. Nesse plano simbólico, o «tecto» é o direito à saúde defendida com eficácia, é o acesso gratuito ou efectivamente acessível a todos os graus do ensino, é uma política pública de permanente mas discreta promoção cultural. Talvez possamos dizer que «tecto» será, em sentido amplo, o quotidiano em sociedade verdadeiramente civilizada e democrática. É claro que este entendimento de «tecto» se distancia da mera (mas sempre fundamentalíssima e urgente) protecção da habitação e de quem a ela se acolhe, mas dele não nos podemos desligar. Porque «tecto», sendo abrigo e segurança, é também civilização. Isto é: sociedade construída de tal modo que dela fique definitivamente expurgada a exploração de muitos por alguns.