EUA: o mago preso no seu caldeirão

António Santos

As eleições do passado dia 3 nos EUA definem-se melhor pelo que não foram do que pelo que foram. O caótico mandato de Trump, campeado pelo insulto racista, a negação da ciência, a imbecilidade e o sexismo mais aberrante, não sofreu a humilhação que a civilização exigia. O dilúvio de votos não foi em Biden — pírrico vencedor que mais não pôde que inverter as estreitíssimas margens com que os republicanos levaram 2016 — mas contra Trump, como demonstram os péssimos resultados democratas em ambas as câmaras. A contagem dos votos estilhaçou, sim, a narrativa identitária de 2016: quem derrotou Trump foram homens, brancos, de classe trabalhadora e com poucos estudos, revelam as estatísticas. Trump, que teve mais votos, aumenta significativamente a votação junto dos negros, cresce muito entre as mulheres e duplica na comunidade LGBT. Sorte diferente teve o golpe de Estado cozinhado pelo actual presidente junto do Supremo Tribunal, que perdeu o apoio do grande capital seduzido pela estabilidade do compromisso com Biden. Mas Trump, grotesco e messiânico, não se evaporará facilmente no fervente clima político que o futuro reserva aos EUA. É que a vasta experiência estado-unidense a reconhecer presidentes auto-proclamados e a acusar de fraude presidentes eleitos parece ter-se voltado contra o feiticeiro. Afinal, ninguém passa um século a misturar feitiços sem nunca cair no caldeirão.

Trump recusa-se a admitir a derrota, insistindo, mal-grado a cada hora mais isolado, que venceu as eleições. A birra aparentemente estéril do magnata vem estalar, com o impacto de 71 milhões de votos, a redoma de cristal da mais sacrossanta convenção do capitalismo americano: a transferência pacífica de poder como forma de consenso sobre a legitimidade da dominação de classe.

Não é, contudo, por falta ou excesso de provas que o sistema judicial não dará provimento à queixa de Trump. Ao longo das semanas que antecederam as eleições, sectores importantes do grande capital desertaram para o campo de Biden. De Jeff Bezos à Fox News, passando pelos senhores da alta finança, da tecnologia e do imobiliário, roeram a corda do golpe. Com excepção dos sectores da energia e do agronegócio, Trump perdeu o grande capital. A título de exemplo, a Universidade de Yale fez saber que 77 por cento dos patrões do influente Caucus de CEO votariam Biden e os bairros mais ricos, cujo rendimento médio anual supera os 100 000 dólares, doaram até três vezes mais para Biden do que para Trump (a camapanha de Biden alcançou o dobro do orçamento). Feitas as contas, dos 30 distritos eleitorais mais ricos dos EUA, Biden venceu em 27.

Não deve surpreender que Biden tenha conquistado facilmente as preferências dos senhores do dinheiro: o candidato democrata foi um dos arquitectos da Guerra do Iraque, construiu uma carreira como defensor da segregação racial, e afirmou-se como o senador dos paraísos fiscais. Num momento de emergência de outras potências mundiais, o capital estado-unidense vota na estabilidade e opta pela concessão. Logo após as eleições, os democratas começaram uma campanha de culpabilização da sua ala «esquerda», sinalizando uma viragem ainda mais à direita. A mensagem de Biden para o sistema judicial do capitalismo é clara: não precisam de se preocupar.

Órfão do suporte do capital, o golpe judicial de Trump tornou-se uma cruzada estreita e pessoal, provavelmente relacionada com o fito de evitar os múltiplos processos-crime que o esperam em vários Estados e quase certamente condenada ao fracasso. Pode, no entanto, lançar as bases para um poderoso movimento de massas galvanizadas pelo fascismo. Trump dispõe agora de duas armas: mais dois meses na Casa Branca com poder quase ilimitado e essa fanática massa humana de 71 milhões de almas, disposta a segui-lo cegamente, para as ruas ou até para a morte.




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