A tua estabilidade faz-me tão mal

Paulo Raimundo (Membro do Secretariado)

Mal Por Mal é o nome de uma canção dos Deolinda onde, a determinada altura, se afirma que «o teu bem faz-me tão mal». Se é certo que as letras dos Deolinda nos permitiriam identificar metáforas diversas, esta em particular se despertou aquando do discurso do Presidente da Republica no 5 de Outubro, no qual pediu aos portugueses para «saber compatibilizar a diversidade com a convergência no essencial».

De que vale a estabilidade se não responder aos anseios dos trabalhadores e das populações?

Lusa


A questão que se coloca, tal como em outros e repetidos momentos, é o que significa ou o que pensa o Presidente e os diversos intervenientes políticos sobre qual é, na actual situação, o essencial para o País e para os portugueses?

As afirmações recentes do actual Presidente, com a exigência da aprovação do Orçamento do Estado, cujo conteúdo desconhece e que só na próxima semana será tornado público, deixariam antever que considera que o essencial é a forma – ou seja, não interessa o conteúdo do documento, o fundamental é garantir que o mesmo passa, evitando assim a tão já famosa forma de pressão e chantagem, a instabilidade política.

Importa desde logo relembrar que foi contra as «normas» da estabilidade política que, em 2015, com a luta dos trabalhadores e das populações e a acção e iniciativa do PCP, se travou um caminho de continuação do roubo de salários e direitos e de destruição do País, se afastou o PSD/CDS do poder (elemento que até hoje não perdoam ao PCP e aos trabalhadores) e se criou condições para uma nova fase da vida política nacional – com a recuperação e reposição de direitos e rendimentos, ainda que limitadas pelas opções de fundo do PS e do seu governo.

Estabilidade para quem?

Por outro lado, a questão – essa sim, essencial – é que os trabalhadores e as populações, ao contrário dos grandes interesses instalados, não se governam a partir de uma qualquer estabilidade política a qualquer preço. De pouco ou nada vale a estabilidade por si só, se a mesma não der resposta de forma determinada aos mais de 720 mil trabalhadores (um quarto dos trabalhadores no activo) que recebem o salário mínimo nacional e que têm de gerir a instabilidade das suas vidas com pouco mais de 550 euros líquidos mensais.

A tão «necessária» estabilidade não se traduz em recuperação de rendimentos dos milhares de trabalhadores empurrados para o lay-off com o seu salário cortado em um terço de um dia para o outro. A estabilidade política como um fim em si mesmo não tem nenhuma consequência no desastre económico que milhares de micro, pequenos e médios empresários de todos os ramos de actividade enfrentam. E os milhares de desempregados ou trabalhadores precários, em particular todos os que estavam no tão «inovador» período experimental e que foram os primeiros a irem para a rua sem quaisquer direitos, o que pensarão eles da necessidade da estabilidade?

Quem coloca a dita «estabilidade» como um fim a atingir e a qualquer preço, aparentemente descurando o seu conteúdo, o que pretende é levar por diante uma política que, no essencial, é contrária à estabilidade que os trabalhadores e as populações justamente aspiram e anseiam para as suas vidas. O que a vida revela é que normalmente estes objectivos são contraditórios, o que tem feito bem a uns poucos, muito mal faz à maioria.

Aumentar salários e valorizar os direitos dos trabalhadores, defender os postos de trabalho, combater precariedade e criar de emprego; reforçar os serviços públicos e o investimento público; assegurar o controlo público de empresas e sectores estratégicos; garantir maior protecção social e mais justa distribuição da riqueza, estas são, entre outras, medidas que garantem a estabilidade da vida dos trabalhadores e das populações. É por esta estabilidade que nos batemos e não será demagógico afirmar que estes objetivos estão longe dos arranjos em curso tão apologistas da estabilidade.




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