Propostas para o fim da oposição entre amador e profissional (continuação)

Marta Pinho Alves

Os filmes elaborados no contexto privado passaram a possuir mais qualidade técnica

Nos anos 1980, o vídeo analógico veio definitivamente tornar o registo de imagens em movimento tão acessível como o registo fotográfico. Apesar desta transformação, o registo amador manteve-se, em larga medida, bastante distinto do profissional e facilmente reconhecíveis os traços que, ao longo do tempo, foram sendo identificados na sua caracterização. Este facto pode ser atribuído a aspectos vários.

À excepção de algumas experiências que foram sendo realizadas no campo profissional, mas que permaneciam episódicas, não existiam contaminações entre equipamentos e suportes amadores e profissionais. Profissionalmente, o cinema mantinha como sistema padrão o 35 mm, que tinha uma qualidade técnica de registo de imagem e som muito superior à do vídeo. Além disso, os sistemas de edição não estavam amplamente disponíveis. Estes eram muito dispendiosos para o regime não profissional e permitiam apenas editar o filme de modo sequencial, o que obrigava a grande planeamento e organização prévios.

Dada a ainda grande desigualdade entre a qualidade do registo profissional e a do amador, os formatos amadores mantiveram-se na esfera íntima de familiares e amigos do seu autor, enquanto as empresas de cinema e televisão continuaram com o direito exclusivo à produção de imagens em movimento para domínio público. Se é certo que alguns programas de televisão contribuíram para a diluição dos dois territórios exibindo vídeos caseiros, este modelo era ainda completamente distinto do permitido hoje pela Internet. A conversão dos sistemas de registo e edição analógicos em digitais e as novas modalidades de distribuição via web, foram os elementos que permitiram fundir a esfera privada com a esfera pública.

Da tecnologia ao acesso

Uma importante transformação ocorreu a partir de meados dos anos 1990, com a criação de câmaras digitais para uso doméstico e o lançamento de software de edição de imagem para computadores pessoais. Este intensificou-se a partir do desenvolvimento de equipamentos tecnológicos multifuncionais que permitem registar imagens em movimento (como smartphones e tablets) e da web 2.0. Estes elementos vieram permitir que os filmes elaborados no contexto privado passassem a possuir mais qualidade técnica, que antes lhes era vedada pela ausência de equipamento e suportes capazes de assemelhar os seus resultados aos elaborados pelo domínio profissional, e que fossem criados novos canais de distribuição, em ruptura com os circuitos fechados a que ficavam habitualmente adstritos, permitindo-lhes exposição pública.

Os elementos que vieram alterar a relação entre o cinema profissional e o amador e acabar com a subalternização do segundo face ao primeiro, permitindo uma dupla contaminação entre esses territórios, podem ser sintetizados em três tópicos: 1) disponibilidade económica, ou seja, diminuição do fosso entre materiais de registo e edição destinados a cada um dos territórios, no que diz respeito à qualidade e aos custos; 2) miniaturização dos equipamentos, que os torna mais facilmente manejáveis e dispensa a anterior complexidade logística necessária para os operar; 3) novas formas de distribuição, através da web, que permitem a circulação pública de objectos audiovisuais alternativos aos produzidos no campo industrial.

O cinema amador recebeu ao longo da sua história o epíteto de «malfeito», não exclusivamente pelo seu uso de tecnologia abaixo do padrão (que não lhe permitia obter registos de qualidade), pela ausência de edição, ou pela sua restrição ao contexto privado. Isto ocorreu também pela sua desobediência ou incapacidade de reconhecimento da gramática própria do cinema profissional. Hoje, contrariamente, esta parece ter-se naturalizado e constituir um léxico comum e de fácil reconhecimento e compreensão.




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