A justiça do vaga-lume

António Santos

Esta não vai ser uma crónica triste. Tinha tudo para sê-lo: Ahmaud Arbery tinha só 25 anos quando foi assassinado a 23 de Fevereiro. Era negro e estava a fazer ­­jogging num bairro branco de Glynn, na Geórgia, EUA. Em declarações à polícia, que não fez detenções, Greg McMichael e o filho, Travis, explicaram que acharam que o Ahmaud podia ser um assaltante e, sentindo-se ameaçados, bloquearam a estrada com a carrinha e tentaram prender Ahmaud. Como resistiu ao rapto, mataram-no com um tiro de caçadeira. «Legítima defesa», corroborou a procuradoria. Só dois meses mais tarde, quando surgiu o vídeo que mostra o homicídio, é que foi aberta uma investigação. Mas não é por isso que esta não vai ser uma crónica triste.

Há beleza nos mais pequenos gestos de resistência à injustiça: os vizinhos organizaram-se e puseram em marcha uma recolha de fundos para pagar o enterro; a mãe, Wanda, lançou-se numa guerra prolongada nos tribunais; já os amigos de Ahmaud começaram uma campanha nas redes sociais sob a divisa #RunWithMaud. Só o avô, Roger Cooper, de 80 anos, não sabia o que fazer. «E ainda não sei», explicou-me, «era bom que houvesse alguma coisa a fazer, mas a verdade é que ninguém nos vai devolver o Maud e estas coisas… estas coisas são antigas».

Antes de morrer, o pai de Roger Cooper deixou-lhe um último pedido: desenterrar da amnésia paterna a história da família. A demanda permaneceu esquecida durante décadas, mas ganhou vida quando mataram o neto. «Precisava de manter-me ocupado. Estávamos todos a sofrer e eu não sabia como homenageá-lo. Nós [os afro-americanos] temos pouca história. Só sabemos quem foram os nossos avós, mas os avós deles não têm nomes nos livros. Eu só sabia que a minha avó tinha fugido da plantação. A casa ainda está lá. A família é a mesma» explicou-me o avô enlutado, «Toquei à porta, expliquei que a minha família tinha sido ali escrava e perguntei se me podiam dar qualquer informação. O tipo ficou muito surpreendido, mas voltou com um enorme monte de papéis antigos. Pegou-lhes fogo com um isqueiro, ali mesmo à minha frente, no meio do alpendre: “Agora agarra nas cinzas e sai da minha propriedade”.

A história não arde

Mas a tantas portas bateu o octogenário que acabou por tropeçar no trabalho de Lateef Andrews, um historiador local da Florida que conhecia a história dos seus avós. «Em 1861, a plantação vendeu os meus avós a uma leiloeira de escravos, a Franklin & Armfield, por 1200 dólares. Foi aí que eles decidiram fugir. Escolheram uma noite em que o meu avô tinha estado a descarregar e combinaram encontrar-se no pântano Bishop. Quando ia para lá o meu avô foi visto e mataram-no com um tiro. Como o meu avô não aparecia, a minha avó teve de tentar chegar sozinha ao Caminho-de-ferro Subterrâneo. Mas essa noite estava muito enevoada e não se via a estrela do Norte. Não via a estrela do Norte, mas via muitos pirilampos a pairar sobre as águas do Mackay. Então atravessou o rio a nado e seguiu os pirilampos até ao Canadá. Eu agora costumo ir para essa margem. Sento-me ali a ver os pirilampos e sinto-me bem. Percebes o que estou a dizer? Não há estrelas na Geórgia, mas há pirilampos.»

«Os acontecimentos», dizia o historiador Fernand Braudel, «passam pelo palco da História como pirilampos: quase ninguém repara neles antes de regressarem à escuridão ou ao esquecimento. Cada acontecimento, no entanto, mesmo que breve, tem um contributo a dar, pode iluminar qualquer canto escuro ou mesmo uma vista mais ampla da história.»

Para iluminar este canto escuro fazem falta todos os contributos, por mais breves, por mais pequenos. É bom por isso que haja luz no ventre dos vaga-lumes sobre a água das noites nubladas. Eu disse que esta não seria uma crónica triste.




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