O Caminho das Aves, de José Casanova – romance de uma geração comprometida com Abril

Domingos Lobo

Este romance é da geração da resistência ao fascismo

O Caminho das Aves, romance de José Casanova, abre com a evocação emotiva dos primeiros dias da Revolução dos Cravos, a bela e promissora revolução portuguesa que punha fim à mais longa ditadura vivida por um país da Europa no século XX. O lusofascismo, herdeiro, nos seus contornos mais sinistros, do nazismo alemão e do fascismo italiano, cairia após 48 anos de opressão graças à coragem, à luta tenaz, à resistência de centenas de patriotas e de um punhado de soldados que na madrugada gloriosa de 25 de Abril ousou voar enfrentando os terratenente e os restos de uma oligarquia reumática em rápido processo de definhamento.

Esse cadáver adiado que procriava, seria varrido do seu pedestal longamente urdido e sustentado pelas polícias políticas (PIDE, GNR, Legião), por um exército submetido e vigiado e, naturalmente, latifundiários, grande capital monopolista, Igreja e uma corte submissa de arrivistas encartados.

José Casanova no magnífico preâmbulo do seu livro, não hesita em deixar-se seduzir pelo estilo de outros cronistas, a começar por Fernão Lopes, também ele autor da crónica de uma outra revolução portuguesa, a de 1383, e de Levantado do Chão de José Saramago. O autor deste O Caminho das Aves, ao prestar-lhes homenagem, pelos rudimentos estilísticos, no início do discurso, quis deixar-nos sinais imperecíveis de uma intenção e de um percurso: este livro fala de um Povo, de uma Cultura, de uma Língua que afirma, em épico lirismo, um modo exaltante de transfiguração do real.

José Casanova entendia caber ao intelectual comprometido a tarefa de ler os sinais do seu tempo e lendo-os descodificar os seus desvarios, sabendo, como Marx na sua XI tese sobre Feerbach, que ”os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes, a questão é transformá-lo.” É da transformação da sociedade portuguesa que a geração que resistiu aos que a queriam tolhedora e ignóbil, deu corpo à Revolução de Abril. É dessa geração, das suas utopias e lutas, que este livro fala.

O Caminho das Aves traça o percurso de um grupo de jovens que, vivendo numa Lisboa cercada, num País prostrado, lutou para transformar a vida, por tornar lícito o desejo de liberdade e justiça. O livro percorre as eleições de 1958, “ganhas”por um contra-almirante de ópera bufa; o assassinato de Humberto Delgado; do golpe magistral perpetrado, a 3 de Janeiro, com inteligência e denodo, que permitiu a fuga da prisão política de Peniche a vários dirigentes do PCP, entre os quais Álvaro Cunhal, Joaquim Gomes, Carlos Costa, Jaime Serra, Francisco Miguel e outros altos dirigentes do Partido; em Janeiro de 61, Henrique Galvão toma de assalto o paquete de luxo Santa Maria; a 4 de Fevereiro inicia-se a luta de libertação dos povos de Angola. Seguem-se a Guiné-Bissau e Moçambique; em Dezembro, as tropas de Nerhu forçam à rendição o residual e mal armado exército português em Goa, Damão e Diu. O império colonial começava a esboroar-se no seu mitológico berço.

Político e histórico, este romance de José Casanova é igualmente o romance da geração da resistência ao fascismo, que vibrou com o grito libertário de Cuba em 1959, que em Maio sentiu a chama breve e inconsequente das ruas de Paris, que emigrou para França, que se exilou em Argel, em Moscovo, pelo mundo, que fez a Guerra Colonial e secou as feridas, que poema a poema, livro a livro, cantiga a cantiga inventou uma manhã de Abril e o Maio maior das nossas vidas, para dar lastro ao sonho. Que construiu do nada cidades sem muros nem ameias, que sonhou um País fraterno e liberto da noite dos vampiros. Que gerou com suas frágeis mãos a utopia possível e deu a beber essa pura água a outros povos. Que se desencantou, que se perdeu – que renascerá, mesmo sabendo que o perigo da reacção fascista, o perigo da contra revolução existe, está aí de novo a bater-nos à porta, a sobressaltar-nos.

O Caminho das Aves é um romance a fazer-se à estrada, à estrada larga que um dia juntará no mesmo percurso todos os povos que ainda não perderam, na voragem destes tempos desiguais, a noção da dignidade, da coragem e da justiça.

Um grito contra a mentira, a violência, a ignomínia. Um romance que é, antes do mais, um hino aos homens e às mulheres, aos que viveram e sofreram as particularidades funestas de um aziago tempo português. Aos que souberam resistir-lhe.

Um romance necessário e exemplar.




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