Para um teatro após o tempo escuro

José Carlos Farias

Nem a Cen­sura, ao longo dos anos, con­se­guiu si­len­ciar o Te­atro

Não é a pri­meira vez que os te­a­tros fe­cham por causa de epi­de­mias. Na Lon­dres de Sha­kes­peare en­cer­raram em vá­rias oca­siões de­vido à peste. Mas re­a­briram. Até que os Pu­ri­tanos ins­ta­lados no Poder os ba­niram por muitos anos. Os te­a­tros porém, vol­taram a abrir. Sempre. Nem a Cen­sura, ao longo dos anos, con­se­guiu si­len­ciar o Te­atro, apesar de as ten­ta­tivas per­du­rarem, como se tem visto com os pa­té­ticos es­forços de gente tão des­qua­li­fi­cada como Ber­lus­coni, Bol­so­naro, Er­dogan ou Orban. E isto porque o Te­atro é a mais di­recta das Artes, um exer­cício in­dis­pen­sável à vida so­cial. Jean Vilar re­lem­brava-o em pa­la­vras exem­plares:

«O Te­atro pode passar horas di­fí­ceis mas nunca mor­rerá porque na sua es­sência é feito da nossa pró­pria es­sência».

Mas for­çoso se torna as­si­nalar: A crise eco­nó­mica pri­meiro e o surto epi­dé­mico de­pois, des­man­te­laram quase por com­pleto o mí­nimo es­tru­tural exis­tente e a pre­ca­ri­e­dade foi in­des­men­ti­vel­mente posta a nu. O Es­tado, inerte por en­tropia, tem que agir, rom­pendo o sub­fi­nan­ci­a­mento, re­co­nhe­cendo a ur­gência não só de re­cons­ti­tuir, mas apro­veitar o en­sejo para de­sen­volver e po­ten­ciar. Tudo está por re­co­meçar. Há que re­fundar o apoio às Artes, evi­tando a in­sis­tência nos erros do pas­sado. As­sumir sem ti­bi­ezas que as bu­ro­cra­cias têm sido apenas uma ins­tância de con­trolo e que a po­lí­tica cul­tural é uma missão do es­tado laico, re­pu­bli­cano e de­mo­crá­tico, um dever cí­vico e um en­cargo moral ina­diável. Não é o es­pe­ci­fi­ca­mente es­té­tico que é ob­jecto da po­lí­tica mas sim os seus re­sul­tados e con­sequên­cias nos ci­da­dãos, em termos do pulsar da co­mu­ni­dade, da ale­gria co­lec­tiva. O que é ren­dível na cri­ação ar­tís­tica não é o lucro, mas sim o que gera em quem a dis­fruta, sem bar­reiras de con­dição eco­nó­mica, ge­o­grá­fica ou de co­nhe­ci­mento. Ser­viço Pú­blico se chama, par­ti­lhando por todos o que es­tava re­ser­vado para uma elite. Um es­pec­tador in­for­mado e de es­pí­rito crí­tico agu­çado pela fruição, está mais cla­ri­vi­dente e li­berto para trans­formar o real. Daí o medo dos pos­si­dentes com o papel do Te­atro na so­ci­e­dade, clas­si­fi­cando-o como «mar­xismo cul­tural».

Toda a obra dos clás­sicos gregos tinha como função e ob­jec­tivo ser útil à Polis, à sua gente, lição que po­demos apro­veitar 26 sé­culos de­pois. O Te­atro, as­sem­bleia de iguais na re­lação sala/​cena, ac­tores/​es­pec­ta­dores, por ex­ce­lência a arte da acção pú­blica, não pode ig­norar nem es­quivar-se às ques­tões so­ciais, porque é, desde o início, um outro da po­lí­tica. A po­ten­ci­a­li­dade das Artes é de­ter­mi­nante da qua­li­dade da de­mo­cracia e esta nega-se a si pró­pria, se am­pu­tada cul­tu­ral­mente.

Com a ameaça do mi­se­rável apro­vei­ta­mento de al­guns sec­tores po­lí­ticos e eco­nó­micos para re­gredir di­reitos so­ciais e de tra­balho, a ac­tual con­jun­tura de con­di­ci­o­na­mento não pode re­velar-se uma ne­o­cen­sura prá­tica para a cri­ação ar­tís­tica que re­siste aos cli­chés da moda e à se­dução pu­bli­ci­tária do mer­cado, nem a con­sa­gração do en­tre­te­ni­mento vulgar mer­can­ti­li­zado e dos sub­pro­dutos te­le­vi­sivos co­mer­ciais, for­ma­tando o gosto ni­ve­lado por baixo.

O Te­atro não se faz à dis­tância, por vias de acesso ci­ber­né­ticas; pre­cisa do seu pú­blico como do ar que se res­pira, da água que se bebe, ele­mentos vi­tais. Ci­tando Ber­nardo San­ta­reno em ano de cen­te­nário:

«O homem de Te­atro ne­ces­sita do pú­blico de uma ma­neira carnal, pois o Te­atro é em si mesmo a ex­pressão  ar­tís­tica mais carnal de todas, uma ex­pressão (...) que tem de ser en­car­nada por um actor que cada vez que a peça está no palco a diz ao vivo para um pú­blico vivo».

Agora, é im­pe­rioso su­perar esta de­li­cada e com­plexa si­tu­ação, re­cu­perar a con­fi­ança, es­bater o medo, logo que pos­sível sair do que efe­me­rizou ainda mais o que já de si era pre­cário, para, cum­prindo os de­síg­nios cons­ti­tu­ci­o­nais, em con­ti­nui­dade, in­ventar o fu­turo, ins­cre­vendo, ar­ti­cu­lando e en­rai­zando.

O Te­atro cá es­tará, numa festa co­lec­tiva, dando nota das con­tra­di­ções ac­tuais, com­ba­tendo in­jus­tiças, pre­vendo as lutas fu­turas!




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