Em Podence, o Entrudo
Os Caretos integram a longa lista das significativas formas de representar a Humanidade
No domingo passado, em Podence, no segundo dia da celebração do Entrudo, uma jovem descia a rua central da povoação no seu fato de Careto, de máscara levantada e o bastão a arrastar pela calçada, roendo uma maçã. Mais tarde, à hora marcada na programação das Festas, outro seria o seu preparo na correria pelas ruas da aldeia entre gritos e chocalhares, uma entre muitos Caretos rompendo das vielas para chocalhar as mulheres passantes, recriando um tempo em que o destempero anunciava fertilidades - da terra e das gentes, condição afinal da vigência dos seres vivos neste mundo.
Os velhos afirmam que Caretos sempre os houve, memória que já era a dos velhos do seu tempo de meninos, recordada, por sua vez, pelos mais velhos de então. Mas moças na pele do Careto era coisa nunca vista, uma espécie de anúncio de um tempo novo, qual seja o das vontades do povo no momento em que os seus protagonistas decidem baralhar os costumes, exigindo que eles sejam História também. E ainda bem, já que na prateleira do pitoresco tudo o que é vivo se acha apertado.
Esta é a primeira vez que os Caretos saem às ruas enquanto bem classificado como Património Imaterial da Humanidade pela UNESCO. A 12 de Dezembro de 2019, o comité responsável pela análise das candidaturas, chegadas de todo o mundo, decidiu incluir os Caretos na longa lista das significativas formas de representar a Humanidade - quase sempre sinais dos que, não tendo mais riqueza do que os braços e a inteligência, deles se servem para fazer tudo aquilo de que a tal Humanidade se pode orgulhar. A classificação foi acolhida em Podence com justificada alegria e, como é da praxe (e assim deve ser), somaram-se os dignitários à celebração da classificação. Disseram-se as palavras de circunstância, aquelas que ficam bem na sua condição protocolar. Só a ministra da Cultura, reconhecidas que lhe são as dificuldades para compreender o significado da Cultura fora da correspondência com o «mercado», que tão ansiosamente se vê servir, considerou que a classificação contribui «para reforçar um activo patrimonial e turístico que excede os limites do território do nordeste transmontano». No fundo, de novo a visão «Política do Espírito», a que nem sequer falta o toque da conveniência turística.
Acontece, porém, que o que importa perceber na correria dos Caretos, na sonoridade do seu chocalhar, nas cores vivas do trajar, na austeridade endiabrada da máscara, não é o potencial turístico do fenómeno, mesmo que a ele não seja possível fugir. O que interessa perceber é a ligação daquelas figuras à cultura agrária que as gerou, celebrando a abundância que a conjugação dos elementos naturais com o suor dos humanos havia de assegurar. O que interessa compreender é a licenciosidade que se inventou para que os corpos se descobrissem no desejo em que os humanos se encontram com mais assunto do que o meramente reprodutivo. O que importa garantir é que o Entrudo Chocalheiro nunca se converta em mais um produto de merchandising que, fora do chão da identidade cultural, acabará sem remédio no outlet da chamada cultura de massas.
O Entrudo celebra a transformação. Do velho em novo, da escassez em abundância, espalhando pelas ruas de Podence – que ali representam o vasto mundo – sacerdotes de cores garridas afrontando os deuses e suas proibições. Anunciam a Primavera, diz quem estuda estes viveres. Anunciam a Esperança, diz quem quer ver naqueles Caretos o símbolo de mais fundas intenções, que são as de chocalhar a História.