Balanço Precário, de Carlos Coutinho

Domingos Lobo

Ba­lanço Pre­cário narra a vida de um re­sis­tente an­ti­fas­cista

Penso haver na li­te­ra­tura por­tu­guesa algum re­trai­mento pelo gé­nero bi­o­grá­fico, pudor será de ex­po­sição pú­blica, de se dar a co­nhecer ao outro, de lhe abrir a porta e re­velar, com a sin­ce­ri­dade pos­sível, pe­cu­li­ares per­cursos de vida. Álvaro Cu­nhal, numa en­tre­vista, ins­tado a pro­nun­ciar-se se não seria in­te­res­sante es­crever a sua bi­o­grafia, res­pondeu que não fazia sen­tido, dado que toda a sua vida, a me­mória mais funda que desse per­curso tinha, o ver­tera nos li­vros – só lhe fal­tava um epi­sódio, mas disso es­tava agora a tratar. Cu­nhal tinha então 89 anos, e es­tava a con­cluir o livro Cor­ré­cios.

É raro apa­re­cerem li­vros em Por­tugal como o Viver para Contá-la, de Garcia Mar­quez, ou o Con­fesso que Vivi, de Ne­ruda. Lembro al­gumas es­ti­má­veis in­cur­sões no gé­nero que por cá se foram pu­bli­cando: as ano­ta­ções me­mo­riais de Ma­nuel Tei­xeira Gomes; Um Poeta Con­fessa-se, de Ar­mindo Ro­dri­gues; Ga­veta de Nu­vens e O Ir­real Quo­ti­diano, de José Gomes Fer­reira e os seus ex­tensos Dias Co­muns, ainda em fase (lenta, muito lenta) de pu­bli­cação, li­vros em que Zé Gomes não apenas se conta mas nos diz do seu tempo e dos seus com­pa­nheiros de jor­nada.

O es­critor e jor­na­lista Carlos Cou­tinho, autor de uma in­te­res­san­tís­sima obra fic­ci­onal, que passa pelo te­atro (O Her­bi­cida, A Última Se­mana Antes da Festa), pelo ro­mance (Uma Noite Na Guerra, Os Duros Dias), pela cró­nica jor­na­lís­tica (Re­cor­da­ções da Casa dos Mortos, No País da Ale­gria), entre muitos ou­tros tí­tulos, de­cidiu abrir a me­mória e, de forma se­rena, numa es­crita co­lo­quial e lím­pida, re­velar-nos o tes­ta­mento exis­ten­cial, ou seja, traçar o seu pe­cu­liar ca­minho pela vida, uma vida plena de an­danças, lutas, vi­tó­rias, de­sen­cantos, exí­lios, pri­sões, de amores e de re­sis­tência.

Nas­cido em For­nelos, no dis­trito de Vila Real, Carlos Cou­tinho diz-nos desse acon­te­ci­mento vital de forma po­li­ti­ca­mente ex­pli­cita: Fiz um ano em 1944, no mo­mento mais letal da Se­gunda Guerra Mun­dial, e sempre soube que a minha avó pa­terna, apesar de pouco in­for­mada, nunca fez parte da­queles mi­lhões de ame­ri­canos e eu­ro­peus, in­cluindo por­tu­gueses, que, como Sa­lazar e Ce­re­jeira, brin­davam à vi­tória de Hi­tler. Es­tava dado o mote sobre as im­pli­ca­ções so­ciais que estas me­mó­rias abarcam, este re­lato bi­o­grá­fico em forma de re­sis­tência ao apa­ga­mento da His­tória.

Carlos Cou­tinho narra-nos a sua in­fância vi­vida no es­paço rural, a ca­brita Car­riça que a avó ma­terna lhe deu de prenda quando com­pletou quatro anos, os ir­mãos, os pais, a gata Bi­chana que o co­nhecia pela voz, a ida para o Se­mi­nário e a sua ex­pulsão anos vol­vidos, por falta de vo­cação, re­beldia e ex­cesso de per­guntas in­có­modas; ecos da re­sis­tência nas terras do Marão, re­latos dos hor­rores da Guerra Civil de Es­panha, os con­luios das pa­ró­quias fron­tei­riças do Minho e Trás-os-Montes, não foram poucos os pá­rocos que or­ga­ni­zaram a caça aos ver­me­lhos; O Dr. Atílio de Fi­guei­redo, de Vila Real, que viu um filho seu exilar-se na Suíça com ou­tros es­tu­dantes vila-re­a­lenses, um dos quais ha­veria de de­ge­nerar e ser um mi­nistro de má me­mória, aquele que co­zi­nhou a ce­le­rada «lei Bar­reto», ao ser­viço de Mário So­ares e da NATO.

Lisboa e as ter­tú­lias li­te­rá­rias no café Monte Carlo, o Curso do Ma­gis­tério Pri­mário e as aulas numa es­cola em Cam­po­lide, a mi­li­tância no PCP, o jor­na­lismo, as vi­a­gens à União So­vié­tica. A guerra co­lo­nial em Mo­çam­bique, como en­fer­meiro mi­litar, ope­ra­ci­onal da ARA, os aten­tados contra o apa­relho co­lo­nial fas­cista, a prisão em Ca­xias: O meu be­liche fi­cava lá ao fundo, à di­reita da ja­nela du­pla­mente gra­deada, e nos dois be­li­ches su­pe­ri­ores só o pri­meiro es­tava ocu­pado pelo Ra­miro Mor­gado, da ARA como eu.

Os trai­dores, os bufos, os ca­ma­radas firmes. A re­sis­tência à opressão, a luta como forma digna de ca­mi­nhar pela vida. O fim do de­gredo em Ca­xias: As portas foram fi­nal­mente es­can­ca­radas e cerca de duas cen­tenas de presos, que já es­tavam pre­pa­rados havia horas, co­me­çaram a sair.

Ba­lanço Pre­cário, de Carlos Cou­tinho, tes­te­munho de vida, co­mo­vente por vezes, mas ri­go­roso sempre que o fac­tual vem à liça. Uma bi­o­grafia que diz a es­sência da vida do autor, da in­fância aos dias de cerco da PIDE, pun­gente e ágil que trans­porta, atre­lado às me­mó­rias do autor, a his­tória das pe­num­bras de um tempo por­tu­guês: Mesmo hoje, eu vol­taria a ficar mais sete dias sem comer, se isso pu­desse obstar a que qual­quer ci­dadão fosse tor­tu­rado como eu fui.

Nota: Textos em itá­lico de Carlos Cou­tinho




Mais artigos de: Argumentos

Em Podence, o Entrudo

No domingo passado, em Podence, no segundo dia da celebração do Entrudo, uma jovem descia a rua central da povoação no seu fato de Careto, de máscara levantada e o bastão a arrastar pela calçada, roendo uma maçã. Mais tarde, à hora marcada na programação das Festas, outro seria o seu preparo...

O dado omitido

Fiel à condição de ser um dos poucos programas da operadora pública de TV onde são examinadas questões relevantes, o «Prós e Contras» voltou a abordar o tema do racismo no nosso país, questão que visitara há uns dois anos e que o recente «caso Marega» reactualizou. Com ampla participação de intervenientes (mas não tão...