Abracadabra, de Cláudia Dias

Domingos Lobo

Abracadabra é um exercício cénico que procura resposta sobre a importância da palavra

Nos seus Estudos sobre Teatro – para uma arte dramática não aristotélica, Bertolt Brecht incluiu um texto em que se questionava sobre a possibilidade de o mundo de hoje poder ser reproduzido pelo teatro: «Foi com interesse que tomei conhecimento de que Frederico Dürrematt formulou, numa palestra sobre teatro, a seguinte pergunta: Poderá o mundo de hoje ser, apesar de tudo, reproduzido pelo teatro?»1

Abracadabra, de Cláudia Dias, é um exercício cénico que procura também uma resposta sobre a importância da palavra, dos seus intrínsecos significados nos dias que vivemos. A acção, ou acções contidas nas palavras ainda nos mobilizam, pão, fome, guerra, paz, violência, bomba, corrupção, ainda nos indignam até ao grito, ainda somos capazes de dizer Basta!, de irmos para a rua e lutar contra a “exploração” e pela “dignidade”, ou também essas palavras perderam combustão, alavancas que nos levem a reagir, declinam num tempo de usura e de indiferença, das emoções virtuais, da violência doméstica, da mulher violentada na carne e nos direitos; as palavras, o seu húmus, banalizou-se, é mais um produto de compra e venda num mercado de capitais e de ganância planetária; que parte do humano ainda se resguarda em nós, que ar respiramos e onde, para sobreviver ao caos, são, já, inúteis as palavras (Mourão-Ferreira) para dizer Amor, Solidariedade, Amanhã ?

Duas mulheres, e um livro de palavras ditas em bocas bilingue, em português e castelhano; duas mulheres que recusam o silêncio, que denunciam e atacam para se afirmar, para firmar uma condição, um direito de cidadania, de ser, contra a opressão e o medo; um livro/muro com palavras que se vão abrindo à medida em que as letras se vão desmoronando, palavras que estavam já lá, antes da derrocada dos seus códigos, que crescem à altura dos gritos, dos corpos, das vozes das mulheres, duas mulheres num palco quase vazio, a negarem a manipulação que o dinheiro urde, a fazerem a viagem possível, a viagem que as palavras ainda permitem, pelas suas dores, por humilhações ancestrais, pela violência que acossa os seus/nossos quotidianos, agora mais visível porque a Liberdade ainda nos revela as dores dos rostos macerados, na pantalha.

A cidade é um chão de palavras pisadas, escreveu Ary, mas precisamos das erguer desse chão, reabilitar A Palavra, dar-lhe espessura, significado, acção, porque ainda Há palavras que nos beijam (O´Neill), que são fonte e ofício para a Vida. Precisamos resgatar do seu túmulo aparente, palavras como Coragem, Pão, Justiça, Fraternidade, Luta e torná-las plenas, limpas, necessárias. Justas.

Era uma Vez duas mulheres no chão de um palco, desatando memórias, raivas, perdendo-se e encontrando-se nos seus labirintos frente a um livro de palavras que se arrastam, que se agitam e iluminam. Duas mulheres convocando-nos para a festa, para o baile, para o compromisso de mudar a Vida, onde cabemos todos.

Era Uma Vez duas mulheres, Cláudia Dias e Idoia Zabaleta, a dizerem-nos no final, quase em surdina, que «não aconteceu nada». Mas tudo aconteceu naquele palco, numa hora apenas, estavam lá todos os sinais. Afinal o teatro, esse ritual orgânico que as palavras permitem, ainda é capaz de reflectir o estupor do nosso conturbado tempo.

Há um túnel de luz por dentro das palavras, esperam apenas o momento justo em que possam destruir o silêncio que as tolhe e as palavras renascem (Torga).


1 Bertolt Brecht, Estudos Sobre Teatro, Portugália, Lisboa, 1964, p.8

Abracadabra, de Cláudia Dias. Interpretações de Cláudia Dias e Idoia Zabaleta. Teatro S. Luiz

 



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