Trabalhadores intelectuais no carrocel da precariedade

INTERVENÇÃO O PCP promoveu no sábado, 8, um encontro sobre a precariedade no trabalho intelectual, que encheu o salão da Junta da União de Freguesias de Lordelo do Ouro e Massarelos, no Porto. O debate ali travado serviu, como sublinhou Jerónimo de Sousa, para aprofundar o conhecimento sobre os problemas e «apontar caminhos e soluções para os superar».

As condições de trabalho dos intelectuais aproximam-nos da generalidade dos trabalhadores

Não foi por acaso que o PCP chamou «encontro» à iniciativa do passado sábado, promovida pelo Sector Intelectual do Porto (Sintel). O seu objectivo não foi a mera apresentação de propostas relativas a um determinado problema ou sector e não se tratou de uma reunião apenas destinada a comunistas. Foi, sim, um encontro na verdadeira acepção da palavra: entre dirigentes, eleitos e quadros do PCP e muitos daqueles que, no dia a dia, com eles se cruzam na luta pelo trabalho com direitos (que é o mesmo que dizer pelo direito a um presente e a um futuro dignos) e pelo desenvolvimento do País.

Na intervenção de abertura, o jovem dirigente do Sintel Diogo Silva explicou que o encontro só foi possível porque «existe uma organização de trabalhadores intelectuais comunistas que intervém e luta e é isso que nos dá o privilégio de chamar a cada subsector para discutir connosco quem luta a nosso lado». E, como se pôde avaliar pela adesão e pela diversidade e qualidade dos contributos que ali deixaram (de viva voz ou por escrito), «esses amigos compareceram». A preparação do encontro envolveu intelectuais, estruturas unitárias e activistas sindicais de sectores onde predomina o trabalho intelectual.

Cada um dos participantes – e foram dezenas os que ali estiveram – tinha diferentes formações, experiências e percursos: artistas e criadores de cultura, jornalistas, arquitectos, advogados, arqueólogos, médicos, professores, investigadores, psicólogos, informáticos. Unia-os a precariedade dos seus vínculos profissionais, que é também a das suas vidas. Os instrumentos são diferentes – as bolsas, os falsos recibos verdes, os contratos de muito curta duração, os parcos apoios públicos, etc. –, mas a precariedade é comum, assim como o seu objectivo: o aumento da exploração.

Em várias intervenções ficou evidente, recorrendo-se a casos concretos, aquilo que Jerónimo de Sousa viria a afirmar no encerramento: os intelectuais são uma camada social heterogénea do ponto de vista de classe onde convivem diferentes – e até contraditórios – estatutos hierárquicos e remuneratórios; porém, uma parte crescente dessa camada vê agravadas as suas condições de trabalho e exploração, o que objectivamente a aproxima da «situação dos demais trabalhadores».

Proletarização crescente

Nos últimos anos, três tendências que se vinham verificando desde há décadas conheceram desenvolvimentos repentinos: o desaparecimento das chamadas «profissões liberais», a massificação do acesso as estas profissões, o seu crescente assalariamento e consequente proletarização – desde meados da última década do século XX que 90% dos intelectuais trabalham por conta de outrem.

Como os restantes trabalhadores, a generalidade dos intelectuais tem hoje como único recurso de sobrevivência a venda da sua força de trabalho. E com eles partilha também as relações contratuais frágeis, os salários baixos, os ritmos intensos, os horários longos e desregulados: em 2014, 72,3% dos trabalhadores intelectuais e científicos tinham horários semanais superiores a 40 horas. Se a isto acrescer o trabalho feito em casa para lá do horário, e foram tantos os casos desta realidade partilhados por participantes no encontro, o panorama agrava-se ainda mais.

A gravidade da situação fica evidente com os dados revelados por Jerónimo de Sousa: os contratos de duração inferior a seis meses representam cerca de 35% do total dos contratos temporários e os de duração igual ou superior a 12 meses ascendem a mais de 70%. As alterações à legislação laboral aprovada na última legislatura por PS, PSD e CDS, com o estímulo e bênção de patrões e UGT, agravará e muito o panorama da precariedade em Portugal. A generalização dos contratos de muito curta duração e o alargamento do período experimental levarão a que muitos trabalhadores, incluindo intelectuais, sejam «trabalhadores-experimentadores» por muito tempo, adiantou o Secretário-geral.

E se é certo que, como o Partido há muito vem dizendo (e o Secretário-geral reafirmou), «a precariedade constitui a antecâmara do desemprego», isso também é verdade para estas profissões, e de um modo crescente: em 1998, era residual o número de trabalhadores intelectuais desempregados, mas em 2017 estes representavam já oito por cento da população desempregada.

Direitos e desenvolvimento

A relação entre as profissões intelectuais, os direitos fundamentais dos cidadãos e o desenvolvimento do País foi salientada em diversas intervenções e destacada pela deputada Diana Ferreira, imediatamente antes de Jerónimo de Sousa encerrar o encontro: não estará em causa o direito constitucional a «informar e ser informado» quando tantos jornalistas têm vínculos laborais precários? E o direito à justiça, no caso dos advogados? Estará o direito à saúde assegurado quando há tantos médicos contratados ao dia e a trabalhar hoje num sítio e amanhã noutro? E a educação, com professores com 25 anos de serviço privados do acesso à carreira e com as escolas carentes de psicólogos e outros técnicos? E o que dizer da promiscuidade existente entre universidades ou centros de investigação públicos e grupos económicos, onde o Estado investe e o privado lucra?

Partindo da tese de que a um posto de trabalho permanente deve corresponder obrigatoriamente um posto de trabalho efectivo, o PCP é quem mais firmemente combate a precariedade, nas áreas intelectuais como noutras. As propostas que combativa e coerentemente apresenta vão ao encontro das aspirações dos trabalhadores, ali expressas uma vez mais.

Antes do Secretário-geral, já a deputada Ana Mesquita (igualmente eleita pelo círculo do Porto) tinha adiantado algumas das principais: criação de um Plano Nacional de Combate à Precariedade; conversão dos falsos recibos verdes em contratos sem termo e reversão de todos os vínculos precários que correspondam a necessidades permanentes das empresas; redução das situações em que é possível contratar a termo; proibição do recurso a estágios, bolsas, falsos recibos verdes e estágios de «emprego-inserção» sempre que existam lugares por preencher nos mapas de pessoal; redução da duração dos contratos a termo certo; novas regras e maior dotação orçamental para a criação cultural e artística.

No caso do PREVPAP, cuja aplicação motivou queixas de diversos participantes no encontro, há que assegurar que cumpre os objectivos para o qual foi criado, o que não está a acontecer. O exemplo deixado por Jerónimo de Sousa é revelador: no caso do Ensino Superior, foram entregues 1512 processos de integração nos quadros da Administração Pública por parte de docentes e 1671 por investigadores; destes só foram aprovados 10% e o governo homologou até hoje 17 docentes e apenas um investigador.

O PCP tem ainda soluções para reforçar os serviços públicos e funções sociais do Estado e para apontar o País a um rumo coerente de desenvolvimento soberano, expresso na política patriótica e de esquerda.


Mobilizar, organizar e lutar

Nas várias intervenções proferidas no encontro do passado sábado ficou claro que são diferentes os níveis de unidade, organização e luta das diversas profissões intelectuais. Professores, médicos e jornalistas, por exemplo, têm há muito as suas estruturas sindicais, mas todos os dias surgem novos desafios a que urge responder: das bolsas ao trabalho «à peça» até às novas «praças de jorna» que constituem o quotidiano de muitos destes trabalhadores.

Noutros casos, como o dos profissionais das tecnologias de informação e comunicação, até existem sindicatos nos respectivos sectores, mas o surgimento de novas empresas e a sua dispersão, aliados às práticas profissionais aí aplicadas (algumas das quais há muito rejeitadas noutros sectores) fazem com que o nível de organização dos trabalhadores seja, ainda, «baixíssimo». Contudo, afirmou o mesmo orador, o Partido está a dar passos, na região, para alterar esta situação: está já em funcionamento, no Sintel, o sub-sector específico para intervir nesta área.

Os arqueólogos, profissão marcada por altíssimas taxas de abandono, constituíram há poucos anos o seu sindicato, o que correspondeu ao desenvolvimento da sua luta em defesa dos seus direitos laborais e, também, do próprio património, ameaçado com a degradação profissional dos arqueólogos.

Em várias profissões não há sequer sindicatos, mas apenas ordens, como são os casos dos advogados e arquitectos, cuja realidade já nada tem a ver com a do profissional liberal de outras épocas. Hoje, a esmagadora maioria dos advogados e arquitectos responde a uma hierarquia, cumpre horário e são sujeitos a avaliação. No caso dos advogados, afirmou-se no encontro, os grandes escritórios concentram um número cada vez maior de profissionais e os advogados independentes são cada vez menos.

Entre os arquitectos, a tendência para a proletarização é semelhante e os salários baixíssimos: 729 euros, em média. Sem sindicato e com a Ordem – pela sua natureza e prática – pouco dada a intervir sobre problemas laborais (e pelo contrário, contribuindo para os agravar), os arquitectos deram nos últimos meses passos importantes visando a sua organização, com a criação do Movimento dos Trabalhadores em Arquitectura/MTA.

Por parte de artistas e trabalhadores das artes e da cultura, existem sindicatos activos e outros movimentos, capazes de agregar situações profissionais diversas, e que têm levado a cabo importantes lutas e inclusivamente conquistado vitórias significativas.

Quase a terminar a sua intervenção, o Secretário-geral do PCP referiu-se precisamente ao carácter decisivo da organização e da luta dos trabalhadores, referindo a importância do seu reforço: «os intelectuais e quadros técnicos, sendo uma camada social com um peso crescente na população activa e na massa assalariada, deverão ser adequadamente considerados na definição dos caminhos para a intensificação, alargamento e desenvolvimento da luta de massas, motor da transformação social.»


Factos e testemunhos

Muito foi dito no encontro do passado sábado, sobre precariedade no trabalho intelectual. Deixamos aqui alguns dados e testemunhos particularmente reveladores.

«Hoje, os trabalhadores intelectuais representam já um quinto da população empregada no nosso País.»

«Desde 1992 que cerca de 88% dos trabalhadores intelectuais são trabalhadores por conta de outrem e entre estes a prevalência de trabalhadores temporários passou de 9,3% em 1992 para 28,3 em 2009, oscilando pouco desde então.»

«[Nas artes visuais] Trabalha-se com projectos de curto prazo. Não se apoia a investigação e o trabalho continuado.»

«130 [trabalhadores da RTP que se candidataram no âmbito do PREVPAP] tiveram parecer negativo.»

«Os médicos não especialistas cumprem “trabalho indiferenciado” em mais de um local e sobretudo nos serviços de Urgência.»

«Práticas laborais rejeitadas noutros sectores [como o trabalho a partir de casa, hoje chamado homeworking] são aplicadas nas Tecnologias de Informação e Comunicação.»

«Há professores com 20 e mais anos de trabalho sem integração na carreira.»

«À taxa de crescimento actual, só em 2045 teremos 1% para a Cultura.»

«Oito em cada 10 arqueólogos têm vínculos precários.»

«Os arqueólogos recebem em média entre 35 e 60 euros por dia, mas só quando trabalham.»

«A profissão de arquitecto é marcada por falsos contratos, horas de trabalho intermináveis e semanas de sete dias sem mais retribuição.»

«Quando se fala de “empregabilidade” deixamos de falar de “direito ao trabalho”.»

«No I3S [Instituto de Investigação e Inovação em Saúde, da Universidade do Porto], dos 75 grupos de investigação existentes, 65 são liderados por investigadores sem qualquer vínculo.»

«72% dos advogados estão disponíveis para mudar de profissão.»




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