Rever o modelo de apoio à artes para garantir direito à criação e fruição cultural
CULTURA A exclusão de candidaturas no concurso para o apoio às artes revelou-se um desastre, impondo a adopção de medidas «imediatas e de fundo». Quem o diz é o PCP, que defende que neste domínio é «preciso alterar tudo».
PCP bate-se por um verdadeiro serviço público de cultura
No plano imediato há que «garantir o financiamento a todas as estruturas que foram classificadas como elegíveis» e «rever a situação das que ficaram como não elegíveis, para evitar que tenham de fechar portas», sintetizou o líder parlamentar do PCP, sexta-feira, 29, ao intervir no debate temático requerido pela sua bancada centrado precisamente no apoio às artes.
Já sobre as medidas de fundo, trata-se de rever, «de uma vez por todas», o modelo de apoio às artes, asseverando que as «responsabilidades do Estado possam ser cumpridas sem recurso a concursos de distribuição de apoios», tal como acontece com as escolas, os centros de saúde ou quaisquer outros serviços públicos.
Estes, como observou João Oliveira, «também não disputam o financiamento entre si, também não participam em concursos para serem financiados». Assim sendo, «por que é que o serviço público de cultura não há de ser assumido com a mesma dignidade e o mesmo método dos outros serviços públicos?», questionou.
Expectativas goradas
Antes, os deputados comunistas tinham posto já o dedo na ferida relativamente ao programa de apoio (biénio 2020/2021) e ao comportamento do Executivo. «O Governo falhou com a palavra dada e frustrou expectativas de muitos. Passadas as eleições, lá vêm os resultados e as más notícias», acusou a deputada comunista Ana Mesquita, falando na abertura do debate.
«Contas feitas, é preciso para o biénio o reforço de 41%, cerca de 12,886 milhões de euros, na verba destinada para os sustentados, se considerarmos a distribuição de acordo com a pontuação atribuída a todas as candidaturas elegíveis», acrescentou a parlamentar do PCP.
Apesar de dizer que os «desafios estão bem identificados», que há necessidade de «adoptar medidas que se demonstrem adequadas para, no curto prazo, dar solução a algumas situações concretas», a ministra da Cultura não deu qualquer sinal claro de pretender alargar os apoios ou de reverter cortes, nomeadamente no Alentejo (ver caixa), preferindo pôr o acento tónico na ideia de que o «Governo desenvolve uma estratégia para a Cultura», que houve «um total de 100 milhões de euros para apoio às artes desde 2018, dos quais 84 milhões de euros são para apoio sustentado».
Falou ainda de uma «maior abrangência territorial dos apoios» e do facto de, «pela primeira vez», os concursos terem aberto no «primeiro trimestre do ano anterior ao apoio». Já quanto a uma mudança de fundo no apoio à artes, esse foi um cenário rejeitado por Graça Fonseca, que admitiu apenas «aperfeiçoar» o modelo, «introduzindo alguns afinamentos».
Não a remendos
«Um modelo que tem de ser remendado em dois anos não precisa de remendos, precisa de um fato novo», contrapôs João Oliveira, que antes lembrara já que sendo uma obrigação do Estado assegurar o direito dos cidadãos à criação e à fruição cultural, e sendo esta assumida por via das estruturas de criação artística, cabe ao Governo «garantir financiamento» para que aquelas desenvolvam o seu trabalho».
É que, foi ainda o presidente da formação comunista a sublinhar este ponto chave, «sem essa responsabilidade do Estado, sem esse financiamento pelo Governo, a criação artística e cultural fica refém das lógicas de mercado, onde se compram e vendem produtos de entretenimento, mas onde não se formam cidadãos conscientes da realidade que têm à volta e da necessidade que têm de intervir sobre ela».
E por entender que uma «sociedade desenvolvida exige seres humanos capazes de reflectir criticamente sobre o mundo que os rodeia, capazes de agir sobre ele para o transformar», tal como exige um «tecido artístico e cultural em condições de assumir o seu papel», João Oliveira deixou no debate um alerta: «A falta de apoio ao tecido cultural para cumprir esse papel paga-se com o obscurantismo, com a ignorância, com as desigualdades e o retrocesso social e democrático».
Machadada na criação artística
As estruturas excluídas no concurso público para o apoio às artes estão a enfrentar dificuldades que podem tornar-se em verdadeiro pesadelo, que pode significar inclusivamente o seu próprio fim.
Dessa realidade deram conta ao longo do debate os deputados comunistas, identificando situações concretas que ilustram essa exclusão num concurso que veio a revelar-se um «desastre» e que gravou a «assimetria no acesso à cultura», como referiu o deputado comunista Duarte Alves.
No distrito de Lisboa, em concreto na capital, foram dezenas as estruturas excluídas, «com anos de trabalho reconhecido por todos»; nos concelhos limítrofes, onde a sua presença é muitas vezes a única resposta cultural para populações de centenas de milhares de pessoas, outras tantas companhias e associações ficaram de fora de apoios imprescindíveis para a sua sobrevivência.
Duarte Alves enumerou algumas delas, com actividade há mais de 20 anos, não deixando de anotar que foram excluídas apesar de terem ficado com classificações superiores a 79 por cento. É o caso do Teatro Aloés (Amadora), do Teatro Esfera (Queluz), do Grupo de Teatro Cegada, ou do Teatro Estúdio Ildefonso Valério, em Vila Franca de Xira, que, aliás, já anunciou o seu encerramento.
Não menos negro é o cenário para muitas companhias e estruturas do Porto e Norte do País. Diana Ferreira enunciou alguns dos nomes que compõem a lista dos excluídos, também eles com candidaturas elegíveis: Seiva Trupe, Ao Cabo Teatro, Esquiva – Companhia de Dança, Orquestra Costa Atlântica, Astro Fingido, Teatro Palmilha Dentada, FilandorraTeatro do Nordeste, Artistas de Gaia Cooperativa Cultural, Fundação Bienal de Cerveira, Varazim Teatro.
Com «décadas de trabalho reconhecido», estes grupos vivem hoje «incertezas e angústias». Ao ponto, alertou a parlamentar do PCP, de haver casos em que admitem mesmo «deixar cair o pano final e encerrar totalmente a actividade».
Na Península de Setúbal, apesar de também terem sido consideradas elegíveis, ficaram sem apoio quatro estruturas: Teatro de Animação de Setúbal,Companhia Mascarenhas Martins, Cooperativa Cultural Espaço das Aguncheiras, FIAR - Associação Cultural. O que significa «dificuldades acrescidas na manutenção da sua actividade e na sua criação», salientou Paula Santos.,
Mas onde esta situação assume um carácter particularmente grave é no Alentejo. O deputado João Dias classificou-a mesmo de «tragédia» e não exagerou: o Alentejo foi a única região do País que sofreu redução da verba, com um corte de oito por cento. O que leva a que, só no distrito de Évora, nenhuma estrutura teatral venha a beneficiar de apoio da DGArtes nos próximos dois anos. Sem falar, claro, de muitas outras em Beja, Évora e Portalegre que ficarão sem qualquer apoio.
«Isto é mais do que um problema de discriminação artística do Alentejo, é querer matar completamente a criação artística no Alentejo», denunciou, com justa indignação, João Dias.