No dia de ser bom

Correia da Fonseca

Foi no passado dia 1, não decerto por ser comemorativo da restauração da independência nacional ou por o calendário nos lembrar que entrávamos no mês do Natal, mas porventura por ser domingo, circunstância nesse dia reforçada pela condição de também ser feriado: nos supermercados e outros grandes espaços comerciais, aconteceu mais uma grande operação de recolha de bens alimentares para posterior distribuição pelos que pouco ou nada frequentam tais lugares pela decisiva razão de não terem dinheiro para compras. Foi, mais uma vez, directa ou indirectamente, resultado da iniciativa de Isabel Jonet na sequência da sua presidência de um chamado Banco Alimentar Contra a Fome, designação triste e talvez até um poucochinho humilhante mas de uma sinceridade até virtuosa: reconhece a existência de fome no nosso país e, por consequência, da necessidade de enfrentá-la. A dúvida que emerge é a de avaliarmos se uma iniciativa relativamente rara como a acontecida no dia 1 é minimamente adequada ao implícito diagnóstico feito, parecendo óbvio que não o é: que a infecção, designemo-la assim, é grave e não pode ser combatida com a administração de uma ou mesmo duas aspirinas por ano, quase sempre quando o frio começa a apertar e algumas iluminações nas ruas anunciam o dia 25.

Uma dor de consciência

Sem surpresa decerto para ninguém, nas reportagens da televisão surgiu o Presidente da República a empurrar o seu carrinho de supermercado e a atulhá-lo de bens alimentares destinados aos cidadãos mais carecidos: sabe-se que o PR é solidário por formação e dever, decerto também que por temperamento, e adivinha-se que gosta de dar destes bons exemplos. Terá sido também sem surpresa que os telespectadores foram informados por legendas da existência de cerca de dois milhões de compatriotas «em risco de pobreza», formulação esta suspeita de optimismo pois que a menção de «risco» apenas servirá para insinuar uma dúvida a propósito de uma situação averiguada. Ora, acontece que a existência de dois milhões de pobres em país de cerca de dez milhões de habitantes é mais que uma dor de alma: tem de ser uma permanente dor de consciência. Aliás, a televisão que tanto gosta de nos informar bem podia aplicar-se a explicar bem o que é isto de ser pobre hoje e no nosso país: teria aí material informativo de primeiríssimas importância e utilidade. E, quem sabe?, talvez então houvesse quem, tendo poder, quisesse acrescentar-lhe a decisão de extirpar da sociedade portuguesa essa doença entranhada que é a pobreza. Afinal, se bem nos lembramos, é também para isso que hão-de servir os governos.




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