Sophia de Mello Breyner Andresen – E a busca da justiça continua

Domingos Lobo

Em Sophia há uma urgência de dizer o mundo e a sua perene substância

Lusa


A poesia de Sophia de Mello Breyner traz-nos, a espaços, o fascínio das palavras raras, dos sentimentos lavrados no sossego das horas calmas, mas não deixa de expressar a indignação. Escutamos, na inquietação dos sobressaltos contemporâneos, essa fala lírica que vai beber a Eurípedes, Shakespeare, Claudel e Dante o seu imanente fulgor, que abre a voz a um tempo de brumas matinais com mar ao fundo e onde a luta pela justiça é também desígnio e alicerce na almejada dignidade do humano.

A fala cúmplice que buscava O dia inaugural, inteiro e limpo, essa necessidade cívica e resistente nos anos da vergonha, que nos convocava, nesses dias de fariseus, grades e desordem, a fazer frente às ameaças de um tempo de compungidos silêncios: Tempo dos coniventes sem cadastro/ Tempo de silêncio e de mordaça/ Tempo em que o sangue não tem rasto/ Tempo da ameaça.

Também o mar, esse mar de Setembro, o mar atracção de infinitos, de enigmas, da descoberta de outros mundos e culturas, o mar que a poeta avistava das janelas da casa da Granja, abertas para um horizonte vasto de sol e sal, a agitar o fundo melancólico do lírico rumor que invade o seu discurso poético: De todos os cantos do mundo/ Amo com um amor mais forte e mais profundo/ Aquela praia extasiada e nua/ onde me uni ao mar, ao vento e à lua [...] Do mar que cantava só para mim.

Este íntimo rumor das palavras, a vibração sensitiva que nelas habita é-nos ainda hoje tão necessária para reverberarmos os clamores do mundo e tudo o que nele nos dói, atados à sua íntima respiração, ao seu húmus: Um dia, gastos, voltaremos/ a viver livres como os animais/ E mesmo tão cansados floriremos/ Irmãos vivos do mar e dos pinhais.

Sei que vivemos tempos estranhos, tempos em que a usura se tornou regra e a febre do dinheiro se transmudou ideologia quase dominante, mas, nesse cerco, haverá sempre quem vá de mãos dadas com o perigo, contra os que vão à sombra dos abrigos, que são os túmulos caiados, onde germina calada a podridão/ Porque os outros calculam, mas tu não. E quem não esqueça O Velho Abutre e seus hediondos crimes, mesmo num tempo em que lhe tentam lavar a face: O velho abutre é sábio e alisa as suas penas/ A podridão lhe agrada e seus discursos/ Têm o dom de tornar as almas mais pequenas.

Ou, num outro registo em que expressa a turvação do seu tempo, dessa inquietação colectiva face aos dias opressivos e amargos dos anos sessenta portugueses, no qual, apesar do deserto silenciado, o sol da esperança fremia: Lutaram corpo a corpo com o frio/ Das casas onde nunca ninguém passa/ Sós, em quartos imensos de vazio,/ Com um poeta em chamas na vidraça.

Os poetas teimam e avançam, vão pelo sonho, mesmo que o chão da lisura seja campo minado pela intriga, pela ignomínia, pela arte de calar a voz incómoda, ressurgiremos ali onde pedra estrela e tempo/ São o reino do homem. Sophia sabe que a poesia apenas pede, lhe pede, a inteireza do ser, [...] que viva atenta como uma antena, para que no quadro sensível do poema reconheça que o fogo das palavras há-de regressar livre e solto, que a vida será um dia justa, inteira e digna, que palavras como frio, muro, distância, ruína, grades que percorrem o seu ígneo discurso como uma urgência de dizer o mundo e a sua perene substância, o seu rumor ávido de fonte, terão outros significados e tantos quantos os cantos dos homens que, de voz liberta, tentam transformar a vida, Aqueles que não temem nem Deus nem a lei/ Imperfeita dos homens. A verticalidade. O humano. A tenaz busca de um sentido para a vida, porque, apesar do absurdo existencial, navegar é preciso: Por um país de pedra e vento duro/ Por um país de luz perfeita e clara/Pelo negro da terra e pelo branco do muro/ Pelos rostos de silêncio e de paciência/ Que a miséria longamente desenhou.

Voz que soube, quando necessário, indignar-se, voz de desafio como a de Antígona, a erguer-se firme contra a bestialidade e o ultraje, voz que se expressa nesse grito trágico de afirmação e de combate, tendo Catarina Eufémia como modelo de luta e resistência: O primeiro tema da reflexão grega é a justiça/ e eu penso nesse instante em que ficaste exposta/ Estavas grávida porém não recuaste/ Porque a tua lição é esta: fazer frente [...] Porque eras mulher e não somente a fêmea/ Eras a inocência frontal que não recua/ Antígona poisou a sua mão sobre o teu ombro no instante em que morreste/ E a busca da justiça continua.

Obra Poética, de Sophia de Mello Breyner Andresen – Assírio e Alvim




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