O Jazz, a liberdade e a Festa
O Jazz nasceu na América da escravatura e do sonho de liberdade
O Jazz nasceu no dia em que milhares de africanos foram arrancados à sua terra, sem que, contudo, os carrascos lhes tenham conseguido amputar a humanidade. Não seria ainda Jazz mas já era, enquanto luz na ignomínia, a sua semente. Embarcados em navios negreiros como mercadoria, milhares de escravos seriam «descarregados» no lado ocidental do Atlântico, naquela que é mais uma vergonhosa página da história da exploração do homem pelo homem. Ali postos para serem «recursos» de uma máquina de produção de riqueza, souberam nunca abandonar a condição humana, usando a música como instrumento de resistência e luta.
O canto que ressoava nas plantações de algodão da América do Norte (e por todo o continente americano) auxiliava no trabalho e era código conspirativo no sonho pela liberdade. Era canto antigo, trazido dos lugares em que o ritmo das vozes acompanhava o impulso do corpo ou o golpe da alfaia; canto de devoção, também, usado nas conversas com os deuses, agora distraídos das suas obrigações. Canto colectivo, as mais das vezes, transportando de um continente a outro a sabedoria a que chamam Cultura – umas vezes sentimento, outras factor de produção gerador de mais-valia.
Abolida a escravatura na lei dos EUA, já o século XIX ia avançado, encarregou-se o capitalismo vitorioso de dar sequência à vocação exploradora da sociedade norte-americana, transformando os escravos de ainda-ontem em operários sem direitos e sem chão. Foi, pois, para ser Pátria dos americanos de ascendência africana que o Jazz nasceu.
Semear sonhos
O Jazz chegou à Festa do Avante! logo na primeira edição na FIL. Com Archie Sheep, músico maior de que, então talvez, só os aficionados do Cascais Jazz teriam conhecimento. Foi para estes que tocou e para uns milhares que, porventura, terão tido ali o seu primeiro encontro com o Jazz. Depois de Archie Sheep passaram pelos mais de 40 anos de Festa dezenas de músicos de Jazz ali chamados por «razões políticas» – as de juntar todas as actividades humanas num lugar que é uma proposta de sociedade, em que a criatividade é regra fundamental. E ali estiveram muitos, de Max Roach a Charlie Haden, de Irakere a Tomas Stanko, de Mário Laginha a Ganelin, de Lagrène a Montoliú, Trazidos por quem, como Ruben de Carvalho e Manuel Jorge Veloso, conhecia bem o mapa mundi do género musical nascida em Nova Orleães.
É o Jazz, por si só, portador bastante do ideal de construção de uma sociedade sem classes, pelas próprias razões que justificaram o seu nascimento. A ilustrar esta realidade, Max Roach, Charlie Haden e tantos outros fizeram da sua Arte – em que a improvisação é elemento central e simbólico da recusa da «normalização» – uma explícita ferramenta de intervenção política. Obras como We Insist Freedom Now Suite, com que Roach sublinhou a sua militância a favor dos direitos cívicos nos EUA ou For a Free Portugal, que Charlie Haden dedicou à luta antifascista portuguesa, subiram ao palco da Festa para serem, em Jazz, argumento internacionalista.
Mesmo que os mecanismos de imposição cultural burguesa insistam no alastramento da indústria do entretenimento, são muitos os que se envolvem na resposta de classe que desmente, também no campo musical, a tese do «fim da História». Que o diga o Jazz, nascido na escravidão, desenvolvido pelo talento de uns poucos e deserdados sonhadores, porém capaz de semear sonhos em gente do mundo inteiro.