Fátima entre os doutores

Correia da Fonseca

O «Prós e Con­tras» da pas­sada se­gunda-feira trazia uma questão am­bi­ciosa logo enun­ciada no tí­tulo da emissão: «O que tem de mudar?». Para a abordar, Fá­tima Campos Fer­reira con­vocou um pu­nhado de con­vi­dados muito qua­li­fi­cados, como aliás é de regra, e de tal modo que quando se ouviu, pra­ti­ca­mente no início de pro­grama, um deles afirmar que «o SNS está em de­ca­dência», alarme que tem es­tado em voga a partir da opo­sição de di­reita, foi pos­sível re­cear que es­ti­vés­semos pe­rante uma es­pécie de pe­lotão de exe­cução que iria passar o tempo a dis­parar sobre o go­verno como cas­tigo por o exe­cu­tivo an­te­rior, pre­si­dido pelo mesmo PM, ter an­dado com de­sa­con­se­lhá­veis com­pa­nhias. De qual­quer modo, o re­ceio, se re­ceio chegou a haver, não se con­firmou: as su­ces­sivas in­ter­ven­ções abor­daram di­versos sec­tores da vida na­ci­onal e al­guns dos pro­blemas que eles exibem, sempre na­tu­ral­mente na óp­tica dos di­versos in­ter­ve­ni­entes, todos eles, re­pete-se, ilus­tres. O que aliás muito se no­tava, desde logo, pelo tom de quase todas as in­ter­ven­ções, e re­sul­tava em de­feito se não em evi­dente vício.

O con­selho do poeta

A questão é que aquilo era um pro­grama de te­le­visão e não uma sessão de se­nado uni­ver­si­tário; que os seus des­ti­na­tá­rios eram uns largos mi­lhares de por­tu­gueses co­muns e não uma elite efec­tiva ou su­posta. Assim, logo se jus­ti­fi­cava que à me­mória acu­dissem uns sá­bios versos do poeta Ar­mindo Ro­dri­gues, por sinal também ele «doutor» porque mé­dico: «Dou­tores de alto saber,/​ex­plicai a vida ao povo;/​se ele não vos en­tender/​pre­ci­sais es­tudar de novo.» Adi­vinha-se fa­cil­mente que ne­nhum da­queles con­vi­dados ilus­tres e sá­bios terá va­gares para ir ler a obra de Ar­mindo Ro­dri­gues, mas é uma pena que assim seja. Ainda assim, aqui fica de­certo inu­til­mente a ci­tação apli­cável não apenas ao caso con­creto deste «Prós e Con­tras». São muitas, de­ma­si­adas, as oca­siões em que su­jeitos de vá­rias es­pé­cies e qua­li­fi­ca­ções, con­vi­dados para irem à TV, se es­quecem ou sim­ples­mente ig­noram que a te­le­visão é um «mass media», isto é, um meio de co­mu­ni­cação de massas, pelo que convém ter nela um com­por­ta­mento ade­quado a essa con­dição. No caso con­creto deste «P e C», ad­mite-se fa­cil­mente que muitos te­les­pec­ta­dores te­nham re­cor­rido ao «zap­ping» e ru­mado para ou­tras pa­ra­gens. E, con­tudo, o tema do pro­grama era, re­corde-se, o pos­sível in­ven­tário do que é pre­ciso fazer para me­lhorar o país, ou me­lhor, a vida de todos nós. Não era, pois, coisa pouca. Pelo que bem se jus­ti­fica que, antes da pró­xima opor­tu­ni­dade, os sá­bios se apli­quem a «es­tudar de novo», como disse Ar­mindo Ro­dri­gues.




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