João José Cochofel (1919/1983) – A poesia onde «o espelho da vida nos escuta»
João José Cochofel foi poeta e destacado obreiro da revista Vértice
João José de Melo Cochofel Aires de Campos nasceu em Coimbra em Julho de 1919. Filho único de uma família da aristocracia coimbrã, cedo Cochofel irá interessar-se pela poesia e pela música, desenvolvendo actividade permanente e profícua em ambas as artes.
Logo em 1938, com 19 anos, publicará Instantes, a que se seguirá Búzio (1940) e será, com o livro Sol de Agosto (1941), o terceiro poeta, depois de Fernando Namora e Mário Dionísio, a publicar nessa modelar e mítica colecção que foi o Novo Cancioneiro. Faz, portanto, parte da 1.ª geração neo-realista, a que podemos estabelecer no espaço temporal entre a Guerra Civil de Espanha e a 2.ª Guerra Mundial.
Embora oriundo de uma família abastada, esse facto não o impediu de aderir ao realismo materialista, fundamental movimento literário e político que foi, através da criação artística, modo de resistência e oposição ao salazarismo, de renúncia às orientações que António Ferro pretendia impor às artes com a denominada «política do espírito» e de ruptura com as derivantes estéticas da Presença. Fernando Namora, amigo de Cochofel e companheiro de tertúlias na Coimbra estudantil, afirmaria que a sua evolução discursiva e temática «já não cabia no espírito presencista».1
Crítico literário e musical, Cochofel ficará ligado a publicações como Sol Nascente, O Diabo, Gazeta Musical e de Todas as Artes, Altitude e, de forma mais comprometida, a partir de 1944, à revista Vértice, da qual foi secretário, sendo o palacete dos Cochofel, à época, a sua sede. Com Carlos de Oliveira, Joaquim Namorado, Rui Feijó, Arquimedes da Silva Santos e um esquivo Eduardo Lourenço, foi possível manter actuante um espaço editorial livre, fecundo e dialéctico, de intervenção crítica, cultural e política que ainda hoje resiste aos desvarios e aos afunilamentos críticos da contemporaneidade.
No palacete da Rua do Loureiro, nas suas salas amplas, com vista privilegiada sobre o casario da urbe, com o Mondego ao fundo, cumpriam-se as conversas, «[...] as tardes ou os serões em casa do Cochofel. Nessas tertúlias se atearam muitas labaredas da minha geração», frase de Namora inscrita na fachada da actual Casa da Escrita, a qual, entre outras meritórias funções, preserva o espólio e as memórias de um dos principais poetas do Novo Cancioneiro e de alguns dos seus companheiros de jornada.
A poesia de Cochofel constrói-se de serenidade e limpidez, de abismos magoados, de plenitude lírica, de inquietude, de denúncia e de combate, como encontramos no poema Firmeza, canção heróica que Lopes-Graça musicou para o Coro da Academia dos Amadores de Música: Sem frases de desânimo/ Nem complicações de alma,/ Que o teu corpo agora fale/ Presente e seguro do que vale// Pedra em que a vida se alicerça/Argamassa e nervo/ Pega-lhe como um senhor/ E nunca, e nunca como um servo.// Não seja o travo das lágrimas/ Capaz de embargar-te a voz;/ Que a boca a sorrir não mate nos lábios,/ O brado de combate.// Olha que a vida nos acena para além da luta.// Canta os sonhos com que esperas,/ Que o espelho da vida nos escuta.
João José Cochofel, publicou vários livros de poesia, de ensaio e crónicas, que se encontram reunidos nas obras completas publicadas pela Caminho: Obra Poética; Opiniões com Data e Iniciação Estética Seguida de Críticas e Crónicas.
Terminamos esta breve evocação de João José Cochofel, que assinala os 100 anos do seu nascimento, com o poema Destino, do livro Os Dias Íntimos, que a música de Lopes-Graça, apesar do desalento que atravessa alguns versos, transformaria em mais uma das suas vibrantes heróicas: Debruçados vivemos/ às grades do nosso tempo/ Aos sonhos decepados/ olhos de vidro contemplam// Vãos caminhos abertos/ nas plagas do coração/Alheios ao que somos/ na palma da nossa mão// Veio a noite de chumbo/ e comeu a cor às rosas/ Lençol de esquecimento/ em pobres mãos dolorosas.// E trazemos oculto/ um morto dentro de nós/ Rio que já não procura/ o porto da sua foz// Mas a chama do ódio/ rubra entre cinzas perdura/ lá onde nos varreu/ de sangue, pus e secura// E pois só nele esperamos/ queime o que ainda nos resta!/ De mãos puras façamos/ o dia da nossa festa.
Festa que o autor de Cárcere ainda viveu e festejou.