Se Isto é um Homem, de Primo Levi, pela Companhia de Teatro de Almada

Domingos Lobo

Se Isto É Um Homem descreve o inexcedível horror dos campos de concentração

Com que palavras descrever os dias do terror, essa antecâmara do Inferno, como dizer, com a serenidade de quem sabe que «ainda não sepultou a sua humanidade», a barbárie, a fome, a lama, a vergonha, a sede, o inumano que habitou a Europa na primeira metade do século XX, num sistema urdido ideológica e brutalmente pelo nazi-fascismo de Hitler, Mussolini, Salazar e Franco?

Como dizer de modo racional o desespero, a raiva, a perplexidade de uma memória ferida e humilhada até ao fundo do Ser, os dias sobrevivos em Auschwitz, Treblinka, Tarrafal, Majdanek, Dachau, Peniche, Breendonk, Caxias, Mauthausen, Aljube? Como contar o que foi resistir ao medo, às sevícias, ao genocídio de milhões de homens, mulheres e crianças, aos guetos, aos curros, à violência, ao mal absoluto, e mesmo assim ter coragem para enfrentar o horror e possuir ainda esse «insensato e louco resíduo de esperança inconfessável» e querer viver para poder contar o terrível absurdo desses dias?

Ser desapossado de tudo, da roupa, dos sapatos, da família, da escova de dentes, do próprio nome, ser apenas um número, o 174 517, a aguardar que o chamem para a formatura, para uma sopa minguada, um pedaço de pão, para o trabalho escravo e, quando as forças o abandonarem, para a câmara de gás. Ser uma sombra, um autómato, o homem expulso de si-mesmo, a peça de um jogo pérfido, concebido com rigor e método, quando o capitalismo, acossado a Leste, mostrou a sua verdadeira e trágica natureza.

A guerra faria milhões de mortos na Rússia, conduziria ao massacre de judeus, de patriotas e antifascistas. Uma Europa devastada num mar de cadáveres e de escombros.

Foi para procurar entender o lado negro que habita o homem, «para fornecer documentos para um estudo sereno de alguns aspectos da alma humana», para «contar, contra o esquecimento», que Primo Levi escreveu o pungente libelo acusatório que é Se Isto É Um Homem, no qual descreve o inexcedível horror por ele testemunhado e vivido no campo de concentração de Auschwitz, entre Dezembro de 1943 e 27 de Janeiro de 1945, data em que o Exército Vermelho ali chegou para libertar os prisioneiros que restavam naquele campo de extermínio.

Primo Levi faria de Se Isto é Um Homem (1947) uma adaptação teatral, em parceria com Pieralberto Marché, publicada em 1966 pela Einaudi. É a partir desta versão, que o encenador Rogério de Carvalho fez a adaptação e encenou, com o rigor conceptual, a inteligência, a sensibilidade que lhe reconhecemos, o talento como lê, dá forma e reinventa os grandes textos, de Moliére a Racine, de Tchekov a Strindberg, este texto de Primo Levi que a Companhia de Teatro de Almada produziu e integrou nessa verdadeira Festa do Teatro que é o Festival de Teatro de Almada, do qual se cumpre a 36ª. edição.

Se Isto É Um Homem tem, na exemplar versão de Rogério de Carvalho, a duração de uma hora e trinta minutos. Tempo de verdadeiro êxtase, daqueles instantes mágicos que só o grande Teatro consegue transportar, não apenas pelo poderoso e cruel testemunho que as palavras de Primo Levi veiculam – de uma sageza, de uma acutilância de bisturi, que desce ao cerne da nossa condição para nos dizer os abismos e o lodo, para nos alertar sobre o predador feroz que nos habita – mas, sobretudo, pelo modo como essas palavras são primorosamente interpretadas por Cláudio da Silva, um actor de excepção, de raras capacidades técnicas, seguro, sem uma hesitação, um deslize, mantendo ao longo do monólogo – numa máscara pela qual perpassam, irrepreensíveis de composição, a angústia, o desencanto, o temor, a raiva, a esperança –, o público preso aos movimentos, ao arrastar do corpo, aos tempos, aos silêncios, às modulações da voz que nos sobressalta e seduz. Uma interpretação notável.

De sublinhar o magnífico cenário de Manuel Graça Dias e Egas José Vieira e o desenho de luz de Guilherme Frazão, que contribuíram para criar a atmosfera opressiva e concentracionária que o texto de Primo Levi exige.




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