O ausente

Correia da Fonseca

O passado 10 de Junho foi comemorado em Portalegre, e aparentemente por isso a presidência da festa foi entregue a João Miguel Tavares, o colunista de quem já aqui uma vez se disse, e agora se repete, que escreve bem e pensa mal. É que João Miguel Tavares nasceu naquela cidade, e é absurdo sequer admitir que tenha sido por isso que as comemorações foram este ano ali centradas, embora se saiba bem que este sempre tem sido um país de milagres antes e depois de 1917. João Miguel Tavares falou, pois, contou-nos uma boa parte da sua vidinha, mas quem ele só num brevíssimo instante referiu foi um homem chamado Luiz Vaz de Camões por causa de quem estava ali toda aquela gente, civil e militar. Na verdade, o pecado, se é que a palavra cabe, não foi só dele: entre quantos usaram a palavra, não se recorda que um só se tenha lembrado de aludir a Camões com uma palavra que significasse não ter sido ele inteiramente esquecido. Se lá, do assento etéreo aonde terá subido e finalmente ao lado de Dinamene, Luiz Vaz deu conta da omissão, não ficou decerto surpreendido: de ingratidões e outras velhacarias tinha ele vasto conhecimento, como testemunhou um pouco nos seus «Desconcertos do Mundo». E do século XVI para cá a coisa não se atenuou, talvez antes pelo contrário.

Um pretexto esquecido

Uma vez que foi decidido, e bem, festejar o 10 de Junho porque nesse dia do ano de 1580 morreu o poeta, teria sido útil lembrar algumas das suas palavras que não perderam adequação à realidade com os séculos transcorridos, antes pelo contrário. Aquelas, por exemplo, em que o poeta refere «a pátria, (…) que está metida / no gosto da cobiça e na rudeza / duma austera, apagada e vil tristeza». E mais ainda quando ele implora: «Fazei, senhor, que nunca os admirados alemães, galos, ítalos e ingleses, possam dizer que são para mandados,/ mais que para mandar, os portugueses.» Adivinha-se facilmente que, hoje, Luis Vaz de Camões apreciaria muito pouco os exigentes mandos que de Bruxelas vêm e não poucas vezes nos infernizam a vida. Mas pouco importa sublinhar este ou outro aspecto; o que em verdade deve ser registado com algum espanto é a desatenção com que o poeta foi tratado em Portalegre, reduzido à condição de pretexto rapidamente esquecido: a coisa chegou ao ponto de a vedeta do dia ter sido João Miguel e não Luis Vaz. E, contudo, por alguma razão o dia em que Camões morreu foi transmutado em Dia de Portugal. Podemos acrescentar que ainda bem.




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