Saúde saudita e republicana
Talvez porque o mundo ainda não tenha entendido a escala do atrofio civilizacional dos EUA, não foram poucos os surpreendidos pelo veto da administração Trump, no mês passado, a uma resolução da ONU sobre a violência sexual em contextos de guerra. Explicaram os diplomatas estado-unidenses que não podiam subscrever um texto que incluísse a expressão «saúde sexual e reprodutiva» das mulheres.
A bizarra postura da diplomacia trumpiana é apenas a embalagem externa. Mas aparência e essência relacionam-se dialecticamente e, no seu interior, os EUA travam uma cruzada fanática contra as mulheres que inspira, um pouco por todo o mundo, o retrocesso dos direitos e das liberdades como medonha forma de futuro.
Desde Janeiro, seis Estados aprovaram a «lei do batimento cardíaco fetal», o nome por que vem sendo conhecida a estrita criminalização da interrupção voluntária da gravidez a partir do momento em que seja possível detectar o batimento cardíaco do feto. No caso do Missouri, que aprovou a lei na sexta-feira, ou do Alabama, por exemplo, a lei não reconhece qualquer tipo de excepção, da violação ao incesto ou à idade da grávida.
Ao reconhecer o batimento cardíaco como «uma pessoa», os seis Estados que já adoptaram a lei (Missouri, Alabama, Geórgia, Kentucky, Mississippi e Ohio), passam a admitir que as mulheres que decidem interromper a gravidez sejam acusadas de assassinato e condenadas à pena de morte. A criminalização é extensível aos médicos que concretizem a vontade da mulher, sendo que a lei, em Estados como o Alabama, por exemplo, prevêem penas de até 99 anos de prisão.
Mas estas leis não passam, contudo, de um engodo: o verdadeiro objectivo dos republicanos é demolir Roe contra Wade, a histórica decisão do Supremo Tribunal que, em 1973, legalizou a interrupção voluntária da gravidez a nível federal. A Casa Branca encorajou propositadamente a aprovação destes diplomas para vê-los chocar contra a Roe contra Wade porque, como explicou Trump em tweet, «temos dois novos grandes juízes conservadores no Supremo»: Neil Gorsuch e Brett Kavanaugh. Se os republicanos tiverem feito bem as contas, o Supremo poderá revogar totalmente a Roe contra Wade, deixando ao critério de cada Estado a proibição total da interrupção voluntária da gravidez.
Nem todos os ataques são, contudo, penais. Tem aumentado exponencialmente o número e a intensidade das vigílias de assédio que fanáticos religiosos mantêm à porta das clínicas; entre 2005 e 2015 o orçamento destinado a estas clínicas foi reduzido em quase 70 por cento e se em 1996 havia 452 clínicas de interrupção voluntária da gravidez nos EUA, em 2014 esse número estava reduzido a 240.
O que está em causa para os sauditas da Casa Branca não é só o aborto: é a própria ideia de «saúde sexual e reprodutiva»; é a ideia de que um batimento cardíaco só merece ser protegido enquanto estiver dentro do útero.