O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS, de José Saramago. Novas abordagens em torno de um romance intemporal
As obras romanescas de Saramago contêm elementos plásticos e sensitivos que seduzem outros criadores
A arte narrativa de José Saramago contém o sentido da História, essa incursão especulativa, pedagógica e crítica sobre a factualidade dos movimentos sociais e da sua dinâmica, lúcida reflexão humanista, a partir do histórico, em que os referentes estruturais, políticos e morais nela expressos, nos eixos centrais desse discurso, entronca num universo tocado por amplos componentes: o sagrado e o profano, o popular e o erudito, o metafísico e o racional, a agudeza e o sensível, a ironia e a perplexidade, memória e imanência, transgressão e a candura, herança pessoana, pulsão neo-realista, análise marxista, solidão, a permanente e dialéctica inquietação sobre os destinos da humanidade – travejamentos cósmicos de um discurso único e desafiador.
Daí que as suas obras romanescas contenham elementos plásticos e sensitivos que seduzem outros criadores que nela encontram componentes expressivas, variantes inventivas, lúdicas e epopeicas, inspiradoras dos seus processos criativos. A Barraca montou duas adaptações de romances de Saramago: A Clarabóia, na versão cénica de João Paulo Guerra e O Ano da Morte de Ricardo Reis, na visão de Hélder Costa. Diversas versões teatrais de Memorial do Convento foram encenadas.
Mas foi no cinema, pela sua própria capacidade de encenação ficcional, que mais vezes as obras de Saramago foram adaptadas: A Jangada de Pedra, de George Sluizer, Ensaio Sobre a Cegueira, de Fernando Meirelles, e O Homem Duplicado, de Denis Villeneuve. A este grupo se junta agora o realizador João Botelho, com O Ano da Morte de Ricardo Reis, dando como justificação ser o ano da morte do heterónimo de Pessoa (1936) "um ano terrível. É muito parecido com o nascimento dos populismos, dos nacionalismos, o nascimento do fascismo, a guerra civil espanhola e a tudo o que hoje está a voltar. Parece que estamos de regresso à Idade Média, as guerras religiosas, o outro é que é o inimigo”. No entender do realizador, é necessário repensar esses anos partindo do texto de Saramago, como forma “de chamar a atenção" para esses fenómenos.
No texto de Saramago, Ricardo Reis, regressa a Lisboa, vindo do Brasil, um mês após a morte de Pessoa-ele-próprio (30 de Novembro de 1935). Instala-se no Hotel Bragança. Começa a percorrer a cidade, descobrindo nela contrastes chocantes entre a propaganda do regime e a realidade. Esse inquiridor olhar levá-lo-á a ser interrogado pelo inspector Victor, da PVDE, cujo hálito tresandava a cebola, tal como a cidade. Ricardo Reis vê um país pobre, ignorante, mesquinho, alienado pelos discursos populistas de Salazar, pelas crenças beatas e os “milagres” de Fátima; refém dos fanáticos da Legião e da Mocidade Portuguesa. Uma sociedade minada pela fome, pelos baixos salários, pelo desemprego. Uma Lisboa tolhida pelo medo, provinciana e torpe, perdida em mexericos, intrigas, doença e delações. Uma cidade povoada de espiões, de agentes nazis, de espanhóis ricos odiando a República e conspirando a favor de Franco, preparando, com o beneplácito de Salazar, e apoio tácito de Hitler, o golpe fascista que derrubará a jovem República e a Democracia e fará de Espanha, por largos anos, um território de ultraje, morte e exploração. Um país-prisão como o era Portugal.
Neste sinistro cenário restava a Ricardo Reis, para além das suas odes a Lídia, o Tejo visto do jardim do Adamastor onde via partir os que abandonavam um país onde o medo, o ódio, a corrupção e a violência política se instalavam.
É todo um diálogo social e literário, do Histórico, do Político e do Religioso, que a prosa de Saramago impressivamente configura, sobrelevando as normas que regem a matéria ficcional e os modos de encenar a indignação e a justeza do humano, que estão genialmente presentes em O Ano da Morte de Ricardo Reis.
O talento de João Botelho acrescentará, por certo, um olhar contemporâneo a este intemporal, e inquietante, romance de José Saramago.