Vozes ao alto

Manuel Pires da Rocha

Uma canção é lugar de encontro do poema, da música e da História

Vozes ao alto / Vozes ao alto / Unidos como os dedos da mão / Havemos de chegar ao fim da estrada / Ao sol desta canção. José Gomes Ferreira escreveu o poema e escrito ficaria, elegante e combativo, não fora Fernando Lopes-Graça tê-lo arrancado à brancura do papel para que fosse dito-cantado por milhares de vozes.

Sílvio Rodríguez poeta, compositor e cantor revolucionário cubano deixou dito que uma canção é o «lugar de encontro do poema, da música e da História». Sabemo-lo bem, das muitas canções de que se muniu a luta antifascista em Portugal. Mas sabemo-lo também da música popular, aquela que nascia da tomada de consciência da condição de explorado, como naquela quadra da Serra da Lousã: Comem-nos vivos em vida / Mortos a terra nos come / Como dá tanta comida / Quem cá passou tanta fome?. Ou a outra de Trás-os-Montes, dizendo Ai se a vida se comprasse / ai do pobre o que seria? / O rico comprava a vida / Só o pobre é que morria.

Quando Lopes-Graça exorta um conjunto de poetas antifascistas a escrever «versos ao gosto popular» tem, naturalmente, a intenção de lhes dar uso conspirativo. As Heróicas são, mais do que um conjunto de belas canções, todo um programa de acção, todo um projecto de sociedade comprometido com «fazer dos anseios bandeira, na dor semear a alegria». Ao lado (e mais tarde), sob a forma de uma escrita mais perto da que usavam os jograis, compositores como José Afonso e Adriano Correia de Oliveira viriam somar canções valiosas ao reportório antifascista, usando imagens poderosas com as de Vampiros que vêm em bandos com pés de veludo / chupar o sangue fresco da manada, advertindo que as forças da natureza / nunca ninguém as venceu.

Não é por acaso que o «Canto Livre» ocupa um lugar central das manifestações populares dos dias a seguir ao dia 25 de Abril de 1974. Trata-se de celebrar, em recintos amplos, o canto que ainda há pouco conspirava nas sociedades de cultura e recreio, convívios da oposição democrática, emissões clandestinas como no caso de Avante, Camarada, de Luís Cília, que – conta Ruben de Carvalho – «compôs a canção durante o seu exílio em Paris em 1967, explicitamente destinada a ser transmitida pela Rádio Portugal Livre. A canção foi incluída no disco “Canções Portuguesas”, interpretadas por Luísa Basto, editado em Moscovo pela editora Melodia em 1967».

O cancioneiro antifascista atravessa todos os géneros, invadindo todos os ambientes da música portuguesa, mesmo aqueles que o fascismo pretendeu converter em bandeira de uma «cultura nacional» do eufemisticamente denominado «Estado Novo». É de Amália Rodrigues a voz que canta as palavras de David Mourão-Ferreira e a música de Alain Oulman numa evocação dos levados a meio da noite / a treva tudo cobria / foi de noite numa noite / de todas a mais sombria. O fado chamava-se Abandono mas, tal como os militantes clandestinos, tomou para si o pseudónimo de Fado Peniche.

Muitas das mais belas melodias portuguesas foram feitas para as palavras de Ary dos Santos. Quem conheceu o Poeta (e quem o encontrar nos registos que dele ficaram) recordará o modo irrequieto com que fazia soar a sua poesia, às vezes metáfora às vezes panfleto, filigrana em qualquer dos casos, sem cedências à qualidade da escrita. Tourada é o retrato do fascismo à beira do fim e é, sobretudo, o anúncio de que nós vamos pegar o mundo / pelos cornos da desgraça / e fazermos da tristeza / graça.

Pois se a História tem um palco (e tem-no!), as canções que combateram o fascismo português são a banda sonora de um dos seus mais belos capítulos. Os que ainda ontem, a 24 de Abril, cantavam em coro a Pedra Filosofal de Manuel Freire e António Gedeão, são os que, faz agora 45 anos, cerravam fileiras (e vozes) no coro de Grândola, Vila Morena.




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